Política Inclusiva

Deficiência: uma característica da pessoa ou da sociedade?

Compartilhe:
Pin Share

Por Flávia Albaine Farias da Costa*

No Brasil, setembro é considerado o mês de luta pela inclusão social da pessoa com deficiência, eis que no dia 21 do citado mês é comemorado o dia nacional da pessoa com deficiência. A data nos faz refletir sobre a forma como a nossa sociedade tem se portado diante dessa temática tão importante.

Se andarmos nas ruas brasileiras e perguntarmos às pessoas a definição do que vem a ser deficiência, certamente a maioria irá associar o conceito com a ideia de alguém doente ou fragilizado, e dirá tratar-se da ausência de um membro, de uma função ou, ainda, de uma limitação intelectual ou mental. Arrisco dizer que pouquíssimos indagados conseguirão trazer o contexto social como agente responsável pela inclusão e pelo acolhimento dessas pessoas.

Esse tipo de atitude demonstra que, em sua maioria, ainda enxergamos a deficiência entrelaçada à ideia de um indivíduo incapacitado diante de suas limitações, o que contraria frontalmente a lógica do modelo social de abordagem de deficiência adotado internacionalmente e nacionalmente, segundo o qual a deficiência não está no indivíduo e sim naquela sociedade que, por questões de inércia e covardia, se mostra inapta para incluir todos os seus cidadãos.

Deficiência não aparente, o que fazer?
10 erros mais comuns ao falar de pessoas com deficiência
As pessoas com deficiência na história do mundo

O modelo social de abordagem da deficiência foi precedido pelo modelo médico. Para essa visão estritamente médica, a pessoa com deficiência é que deve se “normalizar” o tanto quanto possível para a vida em sociedade, na medida em que será reabilitada para se assemelhar às demais pessoas válidas e capazes.

Em que pese o modelo médico de enfoque da deficiência ainda se encontra previsto em alguns dispositivos da legislação brasileira [1], felizmente ele tem perdido espaço para o modelo social, que ganhou enorme força após a incorporação de instrumentos internacionais pelo Brasil, assim como posteriormente à edição de legislação interna em conformidade com tais instrumentos internacionais [2].

Não se negam algumas contribuições trazidas pelo modelo médico para a integração da pessoa com deficiência. Entretanto, o mesmo já não se coaduna mais com os princípios de solidariedade e inclusão que devem permear as relações sociais na atualidade, uma vez que a sociedade não pode mais permanecer inerte esperando que a pessoa com deficiência, por si só, consiga superar as barreiras físicas e sociais.

Sobre a importância do contexto social no enfrentamento da deficiência, cito a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ao julgar o caso “Talía X Equador”, adotou expressamente o modelo social de abordagem da pessoa com deficiência, entendendo que a criança Talía deveria ser considerada pessoa com deficiência não apenas por ser portadora do vírus HIV, mas também pelo ambiente de extrema exclusão social a que ela estava submetida, o que impossibilitou o exercício regular de seus direitos básicos tais como educação, saúde, habitação, dentre outros. E que se, porventura, uma pessoa portadora do vírus HIV estiver inserida em determinado meio social inclusivo e adaptado para que ela possa exercer os seus direitos regularmente, então ela não poderá ser considerada pessoa com deficiência.

No mesmo sentido é a Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre os direitos das pessoas com deficiência (Decreto nº. 6.949, de 25 de agosto de 2009) e seu protocolo facultativo, incorporados pelo Brasil com status constitucional. E, ainda, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº.13.146/2015), popularmente conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Tais documentos adotaram o modelo social de deficiência em substituição ao modelo médico, transformando a sociedade em ator protagonista na inclusão social desse grupo de pessoas.

A deficiência não é mais uma característica da pessoa, mas sim da sociedade, que não consegue se adaptar e permitir que todos (independentemente de eventuais limitações físicas, intelectuais, sensoriais e/ou mentais) exerçam os seus direitos e deveres com o maior grau de autonomia possível e em condições de igualdade com os demais. Ou seja, o problema está na sociedade, que não possui os meios, serviços e instrumentos adequados para que todas as pessoas sejam consideradas incluídas.

Portanto, não é a pessoa com deficiência que tem que se normalizar: é a sociedade que tem que ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus integrantes. Por isso, enquanto a nossa infraestrutura urbana não estiver adaptada para o trânsito seguro de um cadeirante, a sociedade será deficiente. Enquanto os dados estatísticos continuarem apontando para a exclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, a sociedade será deficiente. Enquanto o sistema educacional brasileiro não estiver adaptado para receber todos os tipos de aluno, a sociedade será deficiente. Enquanto houver inércia dos nossos governantes na concretização de políticas de inclusão, a sociedade será deficiente. Enquanto as pessoas com deficiência mental continuarem sendo estigmatizadas e impedidas de ocuparem os espaços sociais na medida das suas possibilidades, a sociedade será deficiente.

O Brasil tem como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana, e objetiva a construção de uma sociedade solidária e sem discriminação [3]. O modelo social de abordagem da pessoa com deficiência nada mais é do que a instrumentalização de tais preceitos no tratamento da pessoa com deficiência, na medida em que busca a parceria de diversos setores sociais para atuarem em conjunto com as pessoas excluídas na busca da equiparação de oportunidades para todos.

Lembremos: a pior deficiência não é uma limitação física, sensorial, mental ou intelectual. A pior deficiência é a incapacidade de aceitar e conviver com as diversidades de forma saudável, pois é exatamente a convivência com as diferenças que nos trazem crescimento e amadurecimento pessoal.

Que tenhamos coragem de lutar, dentro das nossas possibilidades, para sermos instrumentos efetivos de inclusão social, fazendo com que a deficiência moral deixe de existir na nossa sociedade.

*Flávia Albaine Farias da Costa é especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UERJ e Defensora Pública em Rondônia. Criadora do Projeto “Juntos pela Inclusão Social”, é membro integrante da Comissão Especial de Direitos das Pessoas com Deficiência e da Comissão dos Direitos da Mulher da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicosd; é também Colunista de educação em direitos inclusivos da Revista Cenário Minas.

Fonte: http://justificando.cartacapital.com.br

Compartilhe:
Pin Share

Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Content is protected !!

Damos valor à sua privacidade

Nós e os nossos parceiros armazenamos ou acedemos a informações dos dispositivos, tais como cookies, e processamos dados pessoais, tais como identificadores exclusivos e informações padrão enviadas pelos dispositivos, para as finalidades descritas abaixo. Poderá clicar para consentir o processamento por nossa parte e pela parte dos nossos parceiros para tais finalidades. Em alternativa, poderá clicar para recusar o consentimento, ou aceder a informações mais pormenorizadas e alterar as suas preferências antes de dar consentimento. As suas preferências serão aplicadas apenas a este website.

Cookies estritamente necessários

Estes cookies são necessários para que o website funcione e não podem ser desligados nos nossos sistemas. Normalmente, eles só são configurados em resposta a ações levadas a cabo por si e que correspondem a uma solicitação de serviços, tais como definir as suas preferências de privacidade, iniciar sessão ou preencher formulários. Pode configurar o seu navegador para bloquear ou alertá-lo(a) sobre esses cookies, mas algumas partes do website não funcionarão. Estes cookies não armazenam qualquer informação pessoal identificável.

Cookies de desempenho

Estes cookies permitem-nos contar visitas e fontes de tráfego, para que possamos medir e melhorar o desempenho do nosso website. Eles ajudam-nos a saber quais são as páginas mais e menos populares e a ver como os visitantes se movimentam pelo website. Todas as informações recolhidas por estes cookies são agregadas e, por conseguinte, anónimas. Se não permitir estes cookies, não saberemos quando visitou o nosso site.

Cookies de funcionalidade

Estes cookies permitem que o site forneça uma funcionalidade e personalização melhoradas. Podem ser estabelecidos por nós ou por fornecedores externos cujos serviços adicionámos às nossas páginas. Se não permitir estes cookies algumas destas funcionalidades, ou mesmo todas, podem não atuar corretamente.

Cookies de publicidade

Estes cookies podem ser estabelecidos através do nosso site pelos nossos parceiros de publicidade. Podem ser usados por essas empresas para construir um perfil sobre os seus interesses e mostrar-lhe anúncios relevantes em outros websites. Eles não armazenam diretamente informações pessoais, mas são baseados na identificação exclusiva do seu navegador e dispositivo de internet. Se não permitir estes cookies, terá menos publicidade direcionada.

Visite as nossas páginas de Políticas de privacidade e Termos e condições.

Importante: Este site faz uso de cookies para melhorar a sua experiência de navegação e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nosso site, você concorda com tal monitoramento.