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A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte 1

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Homero e seu guia Dioniso conduz Hefesto ao Olimpo (Pintor de Cleofonte, 430-420 a.C.). Vaso de figuras vermelhas, Toledo Museum of Art.)
Homero e seu guia Dioniso conduz Hefesto ao Olimpo (Pintor de Cleofonte, 430-420 a.C.). Vaso de figuras vermelhas, Toledo Museum of Art.

Convido você, caro leitor, a acompanhar o artigo “A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas” da pesquisadora Sandra Regina Schewinsky*. O artigo é muito interessante, pois explica a origem do preconceito contra pessoas com deficiência, assim como nos instiga a refletir que todos somos vítimas do preconceito. É um artigo forte, mas vale a pena acompanhá-lo.

“O preconceito está em nós! Todos somos algozes e vítimas dele, aprisionados na violência das idéias pré-concebidas e conceitos impostos sem reflexão”.

RESUMO

O presente artigo refere-se a reflexões tanto sobre o preconceito em relação às pessoas portadoras de deficiência física, como sobre o sofrimento do preconceituoso. Baseia-se na perspectiva da Teoria Crítica, de acordo com os autores: Adorno, Horkheimer e Crochík. Inicialmente, haverá uma breve retrospectiva histórica em relação às ações preconceituosas e cruéis contra as pessoas portadoras de deficiência e sua posterior relação com a atualidade. Preconiza-se que o preconceito é um fenômeno psicológico que se dá no processo de socialização, discorre, sobre o sofrimento, crueldade e vergonha. Ressalta, por fim, a necessidade de uma compreensão crítica para melhorar as condições individuais e sociais de vida.

A VIDA!

As pessoas vivem a rotina frenética, de casa para o trabalho, levando os filhos para escola e a todos os lugares, correndo atrás do tempo. Acham-se felizes, com o lazer obrigatório, sexo programado, consumo desproporcional do conforto tecnológico e “imprescindível” e, escravas da estética. Buscam sentir-se poderosas e potentes com suas vidas.

De repente, em ínfimos minutos, o inusitado … o acidente.

A Divisão de Medicina de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMRHC/FMUSP), assiste a portadores de grandes incapacidades físicas. São pessoas que têm suas vidas amplamente modificadas pela instalação da deficiência, em que perdem a independência par aquase todas as atividades, das mais primárias como comer só, higiene pessoal, andar livremente por onde desejar e, com tais perdas a autonomia normalmente se esvai.

As seqüelas podem ser dramáticas nas vidas destas pessoas, mas as acompanham dia a dia, um sofrimento não menos insignificante: a crueldade do preconceito em relação ao deficiente físico.

Ao entrar em contato com a Teoria Crítica, eu adoraria ficar à parte, pensar que as provocações dos pensadores: Adorno, Horkheimer1 e Crochík2 nada tinham em comum com minha prática de trabalho e forma de encarar a vida. Engodo no qual tentei refugiar-me, mas não consegui permanecer por muito tempo, talvez culpa da minha má consciência …O incômodo sentido é a mola propulsora do atual artigo, em que convido aos leitores a percorrer comigo algumas idéias sobre a barbárie do preconceito contra o deficiente acompanhados de Adorno, Horkheimer1, Crochík2 e outros autores, sendo que “parece”ficar óbvio que as vítimas somos todos nós.

Atuações preconceituosas e cruéis em relação às pessoas portadoras de deficiência física perpassam pela história. Silva3 conta-nos que no Egito Antigo, consideravam que a deficiência era provocada por “maus espíritos”, sendo que a nobreza, os faraós, os sacerdotes e os guerreiros tinham acesso a tratamentos, enquanto os pobres sucumbiam nas mãos de charlatães, serviam como atrações em circos ou eram usados pelos sacerdotes para estudos e treinamentos de cirurgias.

Na civilização hebraica a discriminação era manifesta nas leis, Moises escreve em “Levítico” que o homem com deformidade corporal não pode fazer oferenda a Deus, e nem se aproximar de seu ministério. A deficiência era vista pelos antigos hebreus, como indicadora de impureza, remissão de pecados antigos, interferência de maus espíritos e das forças más da natureza, logo os deficientes tinham que esmolar para sobreviver, ficando expostos nas ruas e praças, e eram apenas tolerados pela sociedade3 (p.74).

Na Grécia, havia a super valorização do corpo belo e forte que pudesse participar das guerras. Por isso aquele que não correspondesse a esse ideal era marginalizado e até mesmo eliminado, entretanto guerreiros mutilados em batalhas eram protegidos pelo Estado.

A civilização romana também preconizava a perfeição e estética corporal, a deficiência era tida como “monstruosidade” fato que legitimava a condenação à morte dos bebês mal formados: Sêneca, em Amaral4 , justifica o infanticídio:… nós sufocamos os pequenos monstros; nós afogamos até mesmo as crianças quando nascem defeituosas e anormais: não é a cólera e sim a razão que nos convida a separar os elementos sãos dos indivíduos nocivos (p.46).

Algumas crianças não eram mortas e sim abandonadas à margem do Tibre e levadas pelos escravos e pobres para futuramente esmolar: ocupação rendosa.

Com o surgimento do Cristianismo, a visão de homem modificou-se, para um ser individual e criado por Deus. Os deficientes passaram a ser criaturas de Deus, com destino imortal e merecedores de cuidados, … a alma não é manchada por deformidades no corpo (…) uma grande alma pode ser encontrada num corpo pequeno e disforme3 (p. 150). Em decorrência do pensamento cristão, pessoas com más formações congênitas ou defeitos passarama ser protegidas pela lei de Constantino em 315 depois de Cristo.

Entretanto a exclusão dos deficientes continuou no discorrer da história. No Império Bizantino, a Igreja Católica em conjunto como Estado, levava-os para mosteiros. A própria Igreja incumbia-se de realizar mutilações como punições por crimes cometidos. Na Idade Média, a deficiência era vista como atuação de maus espíritos e do demônio, sob o comando das bruxas, e também resultado da ira celeste e castigo de Deus, havia a segregação e os deficientes eram ridicularizados.

A partir do Humanismo, no século XV, modificou-se a concepção de valorização do homem, iniciando-se a diferenciação no tratamento de portadores de deficiência e da população pobre em geral. Nos séculos XVI e XVII, os serviços de saúde passaram a ser também de responsabilidade da comunidade.

Amaral4 refere:

Paracelso e Cardano (ambos do século XVI) são os primeiros a trazer a questão da deficiência para o âmbito da Ciência, mais especificamente da Medicina (pois eram médicos e alquimistas),demarcando uma fronteira entre a visão teológica ou moral e cientifica. Esses estudiosos, embora mantivessem uma estreita ligação com as teorias que enfatizavam as forças cósmicas, afirmavam a legitimidade de tratamento para as pessoas com deficiência
(p. 49).

Em meados do século XVII, foram criados os hospitais gerais,os quais eram; uma combinação de asilo, para a exclusão, e de hospital para a cura e estudos. Segundo Foucault5 a medicina até o século XVIII, tinha caráter individual, em que os cuidados de médico-paciente davam-se em classes de maior posse, os pobres continuavam à mercê de charlatães. Nesse século, começa a se estruturara medicina social.

No século XIX, devido à influência da filosofia humanista e o advento da Revolução Industrial, a concepção social de deficiência continuou a sofrer modificações.

Segundo Amaral4:

Nesse período há a coexistência de múltiplas representações do fenômeno e, conseqüentemente, de múltiplas abordagens e atuações: algumas de caráter mais educacional, outras de cunho médico. Mas de uma forma geral, pode-se assinalar esse período como o da superação da visão de deficiência como doença e o início de seu entendimento como estado ou cond
ição (p.50).

No século XX, há um grande incremento da assistência às pessoas portadoras de deficiência no mundo todo, pois além da filosofia humanista, as nações deparavam-se com mutilados pós as duas grandes guerras e acidentados nas industrias. Surgem programas de reabilitação global, incluindo a inserção profissional de pessoas deficientes.

Nos dias de hoje, pleno século XXI, qual a realidade que se impõe?

No Brasil, temos uma verdadeira fábrica de crianças com Paralisia Cerebral quer seja pelas más condições de saúde e pré-natal das parturientes, quer seja por negligência médica. Em função da violência, deparamo-nos com um número cada vez maior de jovens atingidos por armas de fogo, acidentes automobilísticos e outras conseqüências do uso indiscriminado de drogas. Adultos idosos ou não acometidos de doenças neurológicas, muitas degenerativas. Os centros de reabilitação são insuficientes e em muitos lugares do país até mesmo inexistentes, fora isso, qual a ideologia que impera?

Ao acompanharmos o movimento histórico da concepção e atuação com o deficiente é fácil pensar: Como as coisas melhoraram! De fato é inegável a evolução, mas não podemos nos deixar cegar pelas mudanças e não fazermos uma reflexão crítica sobre o preconceito vigente.

O preconceito está em nós! Todos somos algozes e vítimas dele, aprisionados na violência das idéias pré-concebidas e conceitos impostos sem reflexão.

Acompanhe a segunda parte desse artigo.

 *SANDRA REGINA SCHEWINSKY:Psicóloga-Encarregada do Serviço de Psicologia da DMR-FMUSP, Doutoranda em Psicologia
Social pela PUC-SP, Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, Especialista em Psicologia Hospitalar.(2004)

Veja:

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

2 thoughts on “A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte 1

  • Vera (Deficiente Ciente)

    Acabei de receber um email da Secretaria Especial de Comunicação Social, Secretaria de Pesquisa e Opinião, enviado pelo Sr. Valter Rosa da Silva Junior.

    Boa tarde.
    Tratam-se de resultados sobre uma abrangente pesquisa realizada pelo DataSenado a respeito das condições de vida das pessoas com deficiência no Brasil.

    Avanços e desafios na inclusão social de pessoas com deficiência
    Pesquisa realizada pelo DataSenado mostra que a vida das pessoas com deficiência está melhor para 57% dos entrevistados, mas 77% acham que seus direitos ainda não são respeitados no Brasil. Na avaliação de 59%, o preconceito está diminuindo.
    ———————————————————————–
    Durante a entrevista as pessoas podem dizer que o preconceito está diminuindo, mas e na prática? O dia a dia das pessoas com deficiência tem demonstrado que são diversas as atuações preconceituosas. Como afirma a Drª.Sandra Regina Schewinsky:
    "De fato é inegável a evolução, mas não podemos nos deixar cegar pelas mudanças e não fazermos uma reflexão crítica sobre o preconceito vigente".

    Resposta
  • Daniel Faria

    Sinceramente no meu ver só foi minimizado o preconceito, apesar de campanhas educativas ter ajudado a esclarecer muita coisa do que é deficiência, respeitar seus direitos, mesmo assim ainda vejo que falta ser feito muita coisa. Muitas coisas vêem acontecendo que no meu ver ainda acaba sendo uma forma de preconceito como ter cotas para isso, aquilo, acho que poderíamos disputar vagas de emprego com igualdade, com as pessoas sem Deficiências digamos assim. Sabemos que tem pessoas com Deficiência que não tem coisas de trabalhar etc. etc. neste caso precisa de um atendimento especial, uma atenção especial, porém tem muitas também como eu que estudaram, se dedicaram, se formaram e não tem o direito igualado com a sem Deficiência e no meu entender está errado e precisam começar olhar isso com outros olhos e começarar a separar as coisas. A Lei de Cota ajudou muito na Inserção no Mercado de Trabalho, infelizmente sem ela estaríamos sem trabalhar concerteza, mas penso também que a Lei de Cotas prejudicou de certo forma também, pois a maioria da Empresas estão contratando com salários muito baixos, com funções só operacionais somente para não terem que pagar multas e deixam de olhar que uma pessoa com deficiência é tão capaz como uma sem.

    Resposta

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