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A diversidade nos contos de fada dos irmãos Grimm

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Irmãos GrimmPor Silvana Sousa de Mello
1- Introduzindo os contos

 Os livros são memória. São os documentos onde a humanidade, através dos séculos, vem registrando e projetando suas lutas, medos, sonhos e esperanças – sua cultura. (Perrotti, 1990, p.99)

Para falarmos de literatura infantil, devemos nos remeter aos seus primórdios, porém, deixo o aprofundamento do assunto para os estudiosos que se debruçaram em analisá-la historicamente. Aqui, me detenho apenas em sintetizar alguns acontecimentos importantes, dando um vôo panorâmico, superficial, sobre o assunto.

Apesar do germe da literatura infantil encontrar-se no século XVII, é efetivamente no século seguinte que ela encontrará seu florescimento. (Amaral, 1992, p.127).

Dialogando com Amaral (1992, p.132), “o termo literatura infantil, engloba diferentes modalidades de texto: dos contos-de-fada, fábulas, contos maravilhosos, lendas, as histórias do cotidiano, as biografias ou momentos históricos romanceados, aos documentários e textos informativos”. Esta, surge para reproduzir a ideologia dominante.

Com a ascensão da burguesia, ao findar o século XVIII, começa-se a dar mais atenção às tradições preservadas pelo povo: danças, canções, provérbios e crendices, que ficaram conhecidos como Folclore. Também às narrativas, que durante séculos pais contavam aos filhos para embalar o sono e entreter as crianças, tornaram-se alvos de pesquisas.

Segundo DMarques2 (1998, p.13),

A criança passa a ocupar um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados (brinquedos), culturais (livro infantil) e novos ramos da ciência (pediatria, psicologia infantil, pedagogia) destinados exclusivamente aos indivíduos desta nova faixa etária, que recebeu atributos que a promoveram coletivamente, ao mesmo tempo que lhe garantiram o status da inocência, fragilidade e dependência.

Assim, a literatura consolidada como popular nasceu oralmente do domínio do mito, da lenda, do maravilhoso. Posteriormente, com o aperfeiçoamento da tipografia, expandiu-se a produção de livros e os gêneros literários.

Contudo, as primeiras obras literárias surgiram na França, porém, difundiu-se pela Inglaterra e posteriormente por toda a Europa, até atingir os diversos cantos do mundo todo.

Novamente tomando as palavras de Amaral (1992), “o crescimento do gênero é nítido no século XIX, quando coincide com a descoberta da criança”. (p. 127)  

Até então, não se pensava, como se acredita hoje, que a criança tivesse sentimentos e personalidade. A criança era tida como um ser insignificante. De acordo com Ariès (1986, p. 48), “tem-se a impressão, portanto, de que, a cada época corresponderiam uma idade privilegiada e uma periodização particular da vida humana: a ‘juventude’ é a idade privilegiada do século XVII, a ‘infância’, do século XIX, e a ‘adolescência’, do século XX”.

No entanto, os primeiros textos infantis foram adaptações de textos escritos para os adultos e somente posteriormente é que começou a germinar a idéia de literatura para as crianças.

No século XX, reconhecida como gênero literário, a literatura infantil tem como objetivo, segundo Amaral (1992), “instruir divertindo”, ou seja, vem através de histórias fantásticas, fixar estereótipos humanos e veicular comportamentos exemplares.

Sendo assim, ainda no século XIX, mais precisamente em 1812, conforme DMarques (1992, p.15):

Os irmãos Grimm, editam sua coleção de contos de fadas que pelo sucesso obtido, acabou convertendo-se num sinônimo de literatura para crianças. A partir disso, define-se os tipos de livros que mais agradam as crianças – histórias fantásticas, entre elas os Contos de Andersen (1883), Alice no país das maravilhas (1863) de Lewis Carrol, Pinóquio (1883) de Collodi, Peter Pan (1911) de James Barrie, entre outros. Ou histórias de aventuras, entre estes os livros de Júlio Verne (publicados a partir de 1863) e finalmente a apresentação de temas cotidianos, evitando-se a recorrência a temas fantásticos.

O mundo conheceu, assim, uma das maiores coleções de contos de fadas, totalizando as 181 histórias, escritas em alemão, que foram reunidas pelos dois folcloristas em pesquisas feitas em livros antigos ou em contos ouvidos aqui e ali. Publicadas em várias edições, estas receberam o título Kinder und Hausmärchen3, ou seja, os Contos das crianças e do lar.

Os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), nascidos em Hanau, Alemanha, destacaram-se como estudiosos da língua alemã, especialmente na literatura e filologia. Começaram a viajar muito a trabalho após a morte dos pais, tendo um desejo em comum: reunir a tradição oral alemã. Para tal, recolheram, diretamente da memória popular as antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas, conservadas. Estas histórias foram posteriormente fixadas em textos pelos irmãos, encantando crianças de todo o mundo, perpetuando até os dias de hoje, pois, estas funcionam e fascinam em todas as línguas e culturas.

Neste sentido, Mariano Jr. ao apresentar a obra os contos de fada dos irmãos Grimm edição de 2000, diz:

Recolher e recontar foi o caminho escolhido pelos eruditos que se dedicaram a esse tipo de pesquisa. Entre eles, destaca-se a curiosa dupla dos irmãos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm, estudiosos alemães, que produziram uma obra de imediata aceitação, não só em sua terra natal, como em todo o mundo civilizado. Autores respeitados, já haviam publicado diversos trabalhos que lhes granjearam sólido conceito como gramáticos e dicionaristas. Assim, houve alguma surpresa quando do surgimento de seu livro de contos populares infantis. Não que fosse inesperado o fato de ambos lidarem com esse tema. O que surpreendeu foi constatar que os dois renomados mestres não publicaram um relato vetusto e compenetrado de suas compilações, mas sim o reconto das velhas histórias tão conhecida de todos, numa linguagem amena e singela, praticamente a mesma utilizada pelos que costumavam contá-las ao pé do fogo ou à beira da cama.     

A escolha por estes autores se deu pelo fato de estes serem escritores clássicos e por terem contribuído com importantes contos de fadas, literalizando uma produção de natureza popular e de circulação oral (DMarques, 1998), que foram passados de geração em geração, estando presentes na contemporaneidade.

       Os contos dos Grimm hoje chegam a 211, sendo uma das coletâneas mais famosas em todo o mundo, porém, utilizaremos para tal análise a coletânea Contos de Fada4 que compila apenas noventa e nove contos, entre todos os que foram escritos, pois não encontramos nenhuma coletânea traduzida para o português englobando as obras originais.

       Como analisar todas seria inviável neste momento, nos deteremos apenas naqueles contados freqüentemente às nossas crianças nos dias de hoje. Tais contos foram escolhidos a partir de uma pesquisa na biblioteca do Centro de Formação de Professores da Gerência de Educação Básica de Juiz de Fora (MG), que fornece um número suficiente de livros para serem lidos por todos os alunos, auxiliando as aulas. As obras selecionadas fazem parte do acervo e são os que mais circulam entre os professores e alunos das escolas da rede municipal de ensino de Juiz de Fora.   

       Neste sentido, selecionamos entre os contos apenas sete deles, para uma melhor análise e aprofundamento do assunto, sendo estes o conto da Cinderela, que relata a história de uma princesa que era maltratada por sua madrasta e suas meio-irmãs, que um dia se casa com o homem mais cobiçado de todo o reino, o príncipe; o da Bela Adormecida, que conta a história de uma princesa que foi enfeitiçada por uma bruxa invejosa e condenada a dormir por muito anos;  o conto da Branca de Neve, que fugindo das maldades de sua madrasta vai para a floresta onde encontra os sete anões5; o conto de O Rei sapo ou Henrique de ferro, que conta a história de um príncipe que enfeitiçado por uma bruxa virou sapo e só retornaria a ser príncipe com a ajuda de uma princesinha; o de João e Maria, história de dois irmãos que foram abandonados na floresta pelo próprio pai, incentivado pela madrasta; o da Rapunzel, história de uma princesa que fora criada por uma bruxa e trancafiada numa torre onde só se podia entrar dependurando-se por suas longas tranças, até que uma dia encontra seu príncipe e, o conto da Chapeuzinho Vermelho, uma menina amada por todos, que ao levar bolo e vinho para sua vovozinha, é engolida pelo lobo mau, sendo salva por uma valente caçador.

             Todavia é relevante destacar que com o passar do tempo, muitas das histórias foram sofrendo adaptações de acordo com o contexto sócio-histórico em que foram reescritas, sendo cada vez menos cruéis e acrescidas de características da época. Neste sentido, lembramos, por exemplo, que os sete anões da Branca de Neve, originalmente não tinham nomes que os caracterizavam e que apenas posteriormente, foram atribuídos tais nomenclaturas que hoje conhecemos ou que, no conto original O Rei Sapo ou Henrique de Ferro, o sapo não vira príncipe após um beijo da princesa e sim, após ser jogado na parede, num momento de fúria. 

       Contudo salientamos que no momento nos deteremos na análise dos contos originais.

       2- Os caminhos percorridos da exclusão à inclusão

A sociedade está hoje em constante mudança. Esta segue o progresso das tecnologias e a rapidez das informações advindas dele. Neste sentido, as relações sociais, que refletem o contexto em que estão inseridas, estão sendo reavaliadas e evoluindo gradativamente.

       Historicamente o ser humano percorre o caminho que vem da exclusão, constatada ainda na Antigüidade, no intuito de chegar à celebração da diversidade, no que podemos chamar de paradigma da inclusão.

       Desde a Idade Média, nos deparamos com categorias que foram marcadas pelos processos de exclusão, como por exemplo as crianças e as pessoas com deficiência, que eram desconsiderados no contexto social.

       Na Grécia, de acordo com Goffmann (1988), criou-se o termo estigma

para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. (p. 11)

       Com o advindo do Cristianismo ambas categorias passaram a ser consideradas sagradas, merecendo a proteção da sociedade.

       No caso das crianças, tomando as palavras de Ariès (1981, p. 65):

A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornam-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII.

       Já as pessoas com deficiência, ao serem consideradas filhas de Deus, não mais eram abandonadas à própria sorte e sim segregadas e confinadas em asilos.

       Este processo, denominado por institucionalização, serviu para segregar e manter as categorias excluídas longe do convívio social e pôde ser verificado durante muitos anos, perpetuando até os dias de hoje.

       A partir do século XVI, com a Modernidade, verificou-se, então, que mudanças significativas começaram a serem desencadeadas tanto no aspecto científico e social, quanto no político, econômico e filosófico, contrapondo-se à visão teocêntrica da Idade Média. Sendo assim, o conhecimento, o mundo e o sujeito passaram a ser percebidos de outra maneira.

       Rompeu-se com a visão teológica tradicional e supersticiosa, que foi substituída por uma visão científica, antropocêntrica, baseada na razão caracterizando os pressupostos da Modernidade.

       Segundo Najmanovich apud Silva (2002), a transição da era medieval para a modernidade se caracteriza pela “construção, difusão e imposição de padrões e instrumentos de medidas”. (p.5)

             A Modernidade vem, então, dar estatuto de legitimação à exclusão arrastada desde a Antigüidade, através do estabelecimento de padrões, deixando à margem do sistema social aqueles que não conseguem os resultados esperados, ressaltando, desta forma, a homogeneização, a hierarquização e a normalização, que instituem o sujeito padrão.

       Tomando as palavras de Amaral (1998) podemos visualizar que a autora define três parâmetros utilizados para se legitimar a diferença:

Penso que a diferença significativa, o desvio, a anomalia, a anormalidade, e, em conseqüência o ser/estar diferente ou desviante, ou anômalo, ou anormal, pressupõem a eleição de critérios, sejam eles estatísticos (moda e média), de caráter estrutural e funcional (integridade de forma/funcionamento), ou de cunho psicossocial, como o do “tipo ideal”.6 (p.13)

       Nesta perspectiva, a sociedade começou a se organizar e a se disciplinar para atender às necessidades dos indivíduos previamente estabelecidos como normais.

       O estabelecimento de padrões e o enquadramento das pessoas e seus comportamentos dentro ou fora deles retrata o poder que estava imposto nesta nova visão de sociedade Moderna coma legitimação de preconceitos e estigmas.

       No que tange ao preconceito, Amaral (1998) afirma que:

Como a própria construção da palavra indica, é um conceito que formamos aprioristicamente, anterior portanto à nossa experiência. Dois são seus componentes básicos: uma atitude (predisposições psíquicas favoráveis ou desfavoráveis em relação a algo ou alguém- no caso aqui discutido, desfavorável por excelência) e o desconhecimento concreto e vivencial desse algo ou alguém, assim como de nossas próprias reações diante deles” (p.17).

       A mesma autora nos acrescenta que a concretização e a personificação do preconceito se dá através dos estereótipos e que a todo momentos nos deparamos com eles: negros, judeus, homossexuais, prostitutas, deficientes…

       Amaral (1998) afirma que existem os estereótipos7 particularizados no caso dos deficientes, como por exemplo o deficiente físico ser “o gênio intelectual” ou o cego “o gênio musical”, mas existem também três outros estereótipos generalistas que são empregados cotidianamente, não só aos deficientes, mas a todos aqueles que são significativamente diferentes, como exemplificado acima, pelos meios de comunicação, pelo teatro, pela música, pela literatura… estes são compostos pelos estereótipos de herói, vilão e vítima.

Ao primeiro cabe sempre o papel daquele que supera todos os obstáculos, ultrapassa todas as barreiras, é “o bom” – corporificação do bem – e até mesmo o melhor; ao segundo cabe o papel de agente desestruturador, destrutivo, de ser “o mau” – corporificação do mal; ao terceiro cabe o papel de impotente, de coitadinho. (Amaral, 1998, p.18)

       Já em relação ao estigma, Goffman (1988) foi quem legitimou conceitualmente este termo como marca ou sinal, utilizado para categorizar as pessoas que se afastam dos padrões preestabelecidos, pois conforme vimos anteriormente este, persiste desde a Grécia Antigaa. O referido autor define três tipos de estigma:

Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. (p. 14)

       A diferença vista como antônimo de igualdade, nos remete ao que podemos chamar de identidade, que conforme Woodward (2000), hoje se encontra em crise. Sua construção está constantemente sendo questionada e encontra-se em pauta nas diversas áreas de discussão. Conforme afirma Silva (2000), elegeu-se uma identidade específica que deixa de ser vista como uma identidade, passando a ser a identidade.

       De acordo com o mesmo autor, aparentemente é fácil definir o termo identidade como sendo aquilo que somos: sou brasileiro, sou branco, sou mulher, sou velho. Nessa perspectiva “a identidade só tem como referência a si própria: ela é auto-contida e auto-suficiente […] É o ponto relativamente ao qual se define a diferença”. (Silva, 2000, p.74-7)

       Sendo assim, ao afirmarmos, por exemplo, que “sou branco” estou afirmando que “não sou negro”, “não sou amarelo” e “não sou índio”, ou seja, que também existem pessoas que “não são brancas”. Todavia nossa identidade desapareceria se existisse um lugar onde todos fossem brancos ou todos fossem homens, pois não existiria a possibilidade de comparação. Contudo, respondendo a indagação proposta acima, podemos dizer que identidade e diferença são inseparáveis e interdependentes.

       Entretanto, nossa identidade é construída em relação ao outro e em oposição a outras identidades, pois temos em nós um pouco das pessoas que nos cercam, o que chamamos de Alteridade.

       Todavia, a posição de sujeitos que ocupamos, segundo Woodward (2000, p.61), “não é uma questão simplesmente de escolha pessoal consciente; somos na verdade recrutados para aquela posição ao reconhecê-la por meio de um sistema de representação”. A identidade e a diferença são dependentes da representação, construídas num determinado momento social e histórico e, é por meio desta que adquirem sentidos, passando a existir.

       Silva (2000) afirma que a identidade e a diferença são criações sociais e culturais, tendo que ser produzidas: “seria possível considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produzidas” (p. 76). Nesta perspectiva, a diferença estaria sendo compreendida como ato ou processo de diferenciação.

       Os conceitos de identidade e diferença estão estreitamente ligadas com a relação de poder. Diferentes grupos sociais disputam espaço, deixando as marcas do poder, no processo pelo qual Silva (2000) chama de: “incluir/excluir (“estes pertencem, aqueles não”); demarcar fronteiras (“nós e eles”); classificar (“bons e maus”; “puros e impuros”; “desenvolvidos e primitivos”; “racionais e irracionais”); normalizar ( “nós somos normais; eles são anormais”)” (p. 81-2). Nesta perspectiva, segundo o mesmo autor, identidade pode ser traduzida como “mesmidade” e diferença como “outridade”, ou seja, dizer o que somos significa dizer o que não somos.   

       Na vida social a demarcação de fronteiras e a classificação determinam esta relação de poder, o qual separa a sociedade em grupos bem definidos de dominantes que impõem seus valores aos dominados, num processo de hierarquização. As oposições binárias nós/eles, masculino/feminino… determinam a categorização e por conseqüência a normalização, que é arbitrária, ao eleger um padrão a ser comparado, avaliado e hierarquizado.

       Todavia, de acordo com CMarques (2001), “o poder de vigilância – e em muitos casos o próprio poder de punição – é, assim, exercido por todos os membros da sociedade, uns sobre os outros, de modo a assegurar a reciprocidade necessária para a manutenção da ordem.” ( p. 36)

       LMarques (2001) sobre esta relação dominante/dominado acrescenta que

Essa dominação se faz tanto mais eficiente na medida em que consegue atingir o pensamento e a linguagem das pessoas, ou seja, torna o discurso do dominado o discurso do dominante. […] Mais do que incorporar como normais certos fatos à sua rotina de vida, os grupos e os povos dominados incorporam idéias, as quais passam a compor o conjunto das peças da mais eficiente engrenagem social: a condição de resignação e de passividade dos dominados em relação aos valores dos dominantes. (p. 48).

       Assim, “como a definição de identidade depende da diferença, a definição do normal depende da definição do anormal” (Silva, 2000, p. 84), ou seja, faz-se necessária a existência do anormal tomando o normal como referência.

       Nesta direção, o abismo dicotômico entre o que é normal e o que não é, está cada vez mais sendo questionado.

       O sentido de anormalidade é bem definido pelo autor CMarques (2001), como “contraponto necessário para a construção do sentido de normalidade” (p. 50). Sendo assim, as vítimas das patologias sociais, como desvios de normalidade, são permanentemente vigiadas e excluídas do convívio social, sofrendo discriminações e sendo condenadas a viver à margem da sociedade, como “desviantes” da normalidade.

       Novamente tomando as palavras de Amaral (1998, p. 15), “Penso que devemos reconhecer que normalidade e anormalidade existem (e por isso abstenho-me de usar aspas), mas o que efetivamente interessa na experiência do cotidiano é problematizar os parâmetros que definem tanto uma como outra”.

       A verdade é que os dias atuais imploram por uma nova identidade do homem, que não seja mais tão bem delimitada como antes e que acompanhe as constantes transformações do mundo, que através de seu estreitamento de fronteiras, confronta o tempo todo as identidades conservadas e a distinção entre normal e anormal.

       Carmo apud LMarques (2001) chama a atenção para o emprego, no senso comum, dos conceitos de normalidade e anormalidade, pois, segundo ele, as pessoas não têm clareza dos limites entre essa dicotomia, tendo dificuldade em distinguir o que é normal do que é comum. Como por exemplo: no Nordeste, a fome é comum, mas passar fome não é normal. 

       Este fato pode ser analisado como um dado social, pois as formas de discriminação, de opressão e de controle se dão nas relações sociais. Conforme CMarques (2001), a anormalidade está fundamentada no pensamento Moderno, para se instituir a noção do normal, podendo assim, excluir  realidades, constituindo um mundo de acordo com suas próprias preferências e semelhanças. Sendo assim, o anormal é considerado o inadaptado, aquele que não se ajusta aos modelos de padrões da sociedade, sendo um desviante e por sua vez, estigmatizado e estereotipado.

       Nesta perspectiva, categorias de anormais foram se concretizando: as pessoas com deficiência sendo a mais evidenciada dentre elas. Porém, neste contexto de exclusões sociais, que constitui a formação ideológica dominante, não escapava qualquer indivíduo que se diferenciasse do padrão, assim, o negro, o homossexual, a mulher, o velho, a criança… todos foram sendo colocados à margem da sociedade.

       Na Pós-modernidade, tratada por alguns autores por Atualidade e por mim referida de acordo com a primeira nomenclatura, os valores passaram a se entrecruzarem, pondo em xeque concepções anteriormente existentes.  Nos deparamos com um deslocamento de formação ideológica que deixa de ser excludente e segregativa para rumar em direção a formação ideológica inclusiva, onde os sujeitos deixam de ser percebidos em sua diferença para serem concebidos em sua diversidade.

       Todavia, existem questionamentos sobre esta mudança de paradigmas que parece não ocorreu por completo. Nos dias de hoje, nos deparamos com as três formações ideológicas de exclusão, integração e inclusão, esta última, característica da Pós-modernidade, ainda se manifesta timidamente, caracterizada por algumas ações isoladas, mas vem ganhando força e rumando para uma sociedade para todos.     

       O que presenciamos é que o mundo está perdendo suas fronteiras tecnológicas, econômicas e culturais rígidas e as diferenças impostas estão cada vez mais sendo superadas ou substituídas, graças a um fenômeno conhecido como globalização.

       Atualmente, não podemos mais fechar os olhos para as diversidades, que em sua maioria, ainda são percebidas sob a perspectiva das diferenças. Diferenças estas que estão evidenciadas nas características físicas, psicológicas, sensoriais, sociais ou econômicas; nos costumes, na maneira de se vestir, de falar; nas crenças religiosas, enfim, em todas as direções com a qual nos deparamos.  

       CMarques (2001) afirma que os novos recursos tecnológicos “projetam o homem para um espaço virtual sem limites e no qual todos os usuários estão, em tese, democraticamente em igualdade de condições de acesso e de diálogo com os outros partícipes do processo” (p.41). Diz-se em tese, pois sabemos que nem todos tem acesso a estes recursos.

       Para Rossi apud CMarques (2001),

a globalização pode ser caracterizada como a diminuição das distâncias historicamente constituídas pelos critérios geográficos, políticos, econômicos e culturais; o que significa dizer que o mundo está ordenado por critérios de aproximação ou de afastamento que extrapolam as antigas noções de povo, de nação e de pertencimento a modos regionalizados de ser.

       Como afirma a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu art. 5.º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, todavia, a diversidade celebrada aqui implica no reconhecimento das particularidades e individualidade de cada um.

       Podemos concluir de acordo com CMarques e LMarques (2003) que uma nova concepção de espaço está sendo concebida e de encontro com esta, surge uma nova concepção de tempo que deixa de ser linear, “dando lugar ao princípio de simultaneidade” (p.7).

       3- As estratégias de análise

       Teremos como referência para a análise dos discursos o trabalho de Orlandi (1987, 1990, 1992, 1993, 1995, 1996, 1998). Compreender, de acordo com Orlandi (1993, 1996), é explicitar o modo como o discurso produz sentidos, ou seja, considerar o funcionamento do discurso na produção de sentidos, explicitando o mecanismo ideológico que o sustenta. O caminho para a compreensão do texto é se relacionar com os diferentes processos de significação que nele ocorrem, sendo estes processos função da historicidade, ou seja, história do sujeito e do sentido.

       Para Orlandi (1996, p. 56), “o objetivo da AD é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto lingüístico-histórico”.

       Orlandi (1993, 1996) afirma a heterogeneidade do discurso, caracterizado pela dispersão dos textos e do sujeito, sendo este último afetado pela ideologia. Assim, o texto, atravessado por diferentes posições do sujeito, corresponde a várias formações discursivas, que se caracterizam pelas diferentes relações estabelecidas com a ideologia.

       Conforme Orlandi (1993, p. 58), “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada (isto é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que pode e o que deve ser dito”.

       As formações ideológicas se referem ao conjunto de atitudes e representações das posições de classes em conflito umas com as outras. Neste sentido, cumpre ressaltar que o sujeito se apropria da linguagem no interior de um movimento social, no qual está refletida sua interpelação feita pela ideologia.

       Uma formação discursiva divide o espaço discursivo com outras formações discursivas, numa constante interpenetração de sentidos oriundos de formações ideológicas diferentes.

       A formação discursiva representa, pois, o lugar de constituição do sentido e da identificação do sujeito. Nela o sujeito adquire identidade e o sentido adquire unidade.

       Nosso procedimento será o de compreender tudo o que compõe o nosso corpus discursivo, que é constituído dos sete contos de fadas escritos pelos irmãos Grimm.

       4- Analisando os contos e concluindo à luz da diversidade

       A literatura infantil foi, e ainda é freqüentemente, um meio de impor à criança padrões de comportamento e formas de pensamento transmitido através de personagens exemplares.  (Sandroni, 1987, p.107)

       As coisas fantásticas perpassava e faziam parte de todos os contos. Assim, era comum encontrarmos coisas do tipo: a casa da bruxa feita de doce, no conto de João e Maria; as longas tranças de Rapunzel, através da qual a bruxa e o príncipe subiam até a torre; os cem anos em que a Bela Adormecida e todos que viviam em seu reino, inclusive os animais e os insetos, dormiram; as correntes colocadas em torno do coração do fiel Henrique, no conto O Rei sapo ou Henrique de ferro, para que este não arrebentasse de tanta tristeza ao ver o príncipe, a quem servia ser transformado em sapo; a satisfação dos desejos de Cinderela pelos pássaros, com lindos vestidos e sapatos para ir ao baile; ou o caçador que ao cortar cuidadosamente a barriga do lobo, encontra Chapeuzinho Vermelho e sua avó vivas, são exemplos disso.

       Ao analisar tais contos encontramos contemplados, em sua maioria, a questão dos ensinamentos morais, ou seja, as normas de conduta e as punições sofridas por quem desobedecê-las. Isto se fundamenta, já que a literatura infantil inicialmente, tinha como finalidade transmissão de valores, sobretudo morais.

       Segundo Barros (2003, p. 48), “a moral é por si mesma uma prática enquanto totalidade de leis incondicionais e absolutas de acordo com as quais os homens devem agir. […] Neste sentido, nenhuma condição pode levar o homem a uma realização diferente da ordenada, o que significaria a negação da moral” e, assim sendo, as histórias trazem seus castigos temporários para tais ações, como o que acontece no conto da Chapeuzinho Vermelho, que ao desobedecer as ordens de sua mãe, é engolida pelo lobo; porém, se arrepende, no final, dizendo que sua atitude não se repetirá: “Foi uma alegria para todos três. O caçador tirou a pele do lobo e levou-a para casa, a avó comeu o bolo e bebeu o vinho que a neta trouxera, e Chapeuzinho Vermelho, muito alegre por ter escapado, prometia a si mesma: “De agora em diante, jamais me afastarei do caminho, desobedecendo minha mãe”. ( Grimm, 2000, p. 332-3)

       Vázquez apud Barros (2003), afirma que Hegel concebe a moral “como fruto da relação dialética entre os indivíduos e a sociedade. Assim, os códigos morais têm caráter histórico-social”. (p.48)

       Tudo isto fica evidenciado nos trechos abaixo, como por exemplo no conto do “Rei sapo ou Henrique de Ferro”, quando o Rei ao perceber que sua filha quebrou uma promessa, fez com que ela voltasse atrás, se redimindo por seu erro:

       _ És tu, sapo, que estás falando? _ ela perguntou. _ Estou chorando porque perdi minha bola dourada, que caiu dentro da água.

       _ Não chores _ disse o sapo. _ Posso ajudar-te, mas o que me darás se eu te devolver a bola?

             _ O que quiseres, meu caro sapo _ prometeu a jovem princesa. _ Meus vestidos, minhas jóias, pedras preciosas e pérolas e até mesmo a coroa de ouro que estou usando.

            _ Não me interesso por teus vestidos, tuas jóias, pedras preciosas, nem por tua coroa. Se, porém, gostares de mim e permitires que eu seja teu companheiro e jogue contigo, e sente em tua mesa, comendo com teu prato e bebendo em teu copo e dormindo em tua cama, nesse caso prometo que entrarei dentro da água e trarei de novo tua bola dourada.

       _ Está bem! _ disse a princesa. _ Prometo-me tudo que desejas, se trouxeres minha bola de novo.

       Enquanto falava, porém, ia pensando: “Que sapo bobo falando dessa maneira! A única coisa que ele faz é ficar no meio da água com os outros sapos a coaxar”. Não pode ser companheiro de um ser humano!”

       Logo que ouviu a promessa, contudo, o sapo mergulhou de cabeça para baixo e pouco depois reapareceu, nadando com a bola dourada na boca e atirou-a à grama à margem do poço. A filha do Rei ficou satisfeitíssima e, mais do que depressa, agarrou a bola e saiu correndo.

       […]

       No dia seguinte, quando ela estava sentada à mesa, em companhia do rei e de todos os cortesãos, comendo em seu prato de ouro, ouviu um ruído esquisito _esplach, esplach _ como se algum bicho estivesse subindo a escadaria de mármore. E, quando o ruído cessou, bateram na porta e gritaram:

              _ Princesinha, princesinha, abre a porta para mim!

       […]

       _ Ah, querido pai! Ontem, eu estava na floresta, sentada junto do poço e, quando fui jogar, deixei a bola cair dentro da água. E agora ele apareceu aqui e quer ficar comigo!

       Nesse momento, o sapo tornou a bater na porta e cantou:

       Princesinha, princesinha,

       Abre a porta para mim!

       Juraste ser boazinha,

       E foi por isso que vim!

       _ Se prometeste, tens de cumprir _ decidiu o Rei. _ Deixa-o entrar.(Grimm, 2000, p.91-92)

       Encontramos nos contos, ainda, os estigmas relativos ao caráter individual e às abominações do corpo.

       No caso do primeiro, podemos evidenciá-los em alguns trechos dos contos, como no caso do pai de Cinderela que ignora a própria filha:

        “_ Não tens outra filha?

       _ Não _ disse o velho. _ Só há uma pobre coitada, suja e maltrapilha, que minha primeira mulher deixou, mas não é possível que ela seja a noiva”.(Grimm, 2000, p. 26)

       Ou quando o pai de João e Maria, incentivado pela esposa, madrasta das crianças, deixa seus filhos numa floresta densa, para que não voltem para casa:

       _ O que vai ser de nós? Como vamos poder alimentar os nossos filhos quando já não temos nós mesmos coisa alguma para comer?

       _ Vou dizer-te o que temos que fazer, meu marido _ respondeu a mulher. _ Amanhã cedo levaremos seus filhos para o lugar mais espesso da floresta e acenderemos uma fogueira, daremos uma fatia de pão a cada um e voltaremos para trabalhar, lá os deixando sozinhos. Eles não conseguirão descobrir o caminho de volta e, assim, ficaremos livres deles.

       _ Não, mulher _ disse o homem. _ Não farei isso. Como poderei deixar meus filhos abandonados na floresta? As feras não tardarão a matá-los.

       _ És um idiota! _ reagiu a mulher. _ Preferes que nós todos morramos de fome?

       E tanto atormentou o marido, que ele acabou concordando com a proposta.

       _ Mas eu vou ter saudades de meus filhos! _ desabafou.(Grimm, 2000, p.278)

         

       Quanto ao último, abominações do corpo, é manifestada sempre como punição ou suplício, ou seja, como um castigo corpóreo pelas transgressões às regras de conduta impostas socialmente.

       Neste sentido, Foucault (1989) em seus estudos, já nos relatava sobre o suplício como: “pena corporal, dolorosa […] um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade” (p.34), predominante no século XVIII. E acrescentava ainda que os castigos corpóreos, sinalizavam a justiça através da punição. O exemplo abaixo, extraído do conto da Cinderela, nos permite visualizar que esta era a idéia passada às novas gerações através das histórias orais:

Quando foi celebrado o casamento da jovem com o príncipe, as duas malvadas irmãs compareceram, dispostas a adularem Cinderela, a fim de gozarem de sua amizade e tirarem vantagem disso. Quando o casal de noivos entrou na igreja, a irmã mais velha se colocou à direita e a mais moça à esquerda, e os pombos arrancaram um olho de cada uma delas. Quando os noivos voltaram do altar, a irmã mais velha ficou à esquerda e a mais moça à direita, e os pombos arrancaram o outro olho de cada uma. E, assim, as duas irmãs foram castigadas por sua perversidade, ficando cegas o resto da vida. (grifo meu) (Grimm, 2000, p. 28)

       Assim, as histórias de contos de fadas vinham perpetuando esse pensamento por todos estes séculos. Fazia-se então um paralelo com a “diferença” como sendo um castigo e que a pessoa estava sendo punida por algo que anteriormente fizera.

       Isto reforça a visão pré-formista da deficiência, cuja atribui às pessoas com deficiência um castigo de Deus. (Fonseca, 1997)

       Neste sentido, os contos esperam de Deus ou de divindades superiores, a realização dos desejos como acontece em Rapunzel, “era uma vez um casal cujo maior desejo era ter um filho. Os anos iam se passando, e o filho não vinha. Afinal, a mulher ficou esperançosa de que Deus ouviria suas preces” (Grimm, 2000, p. 322). Enfim, as realizações sempre vêm de cima, provavelmente do céu, como evidenciamos em Cinderela que realiza todos seus desejos através dos pássaros que vivem em cima da árvore plantada sob o túmulo de sua mãe:

       Como não havia pessoa alguma em casa, Cinderela foi ao túmulo de sua mãe e, debaixo da aveleira gritou:

       Sacode os ramos e faze assim

       Que ouro e prata caiam em mim.

       E, sem demora, uma ave lançou-lhe do alto um vestido enfeitado de ouro e prata e sapatinhos bordados de seda e prata. Cinderela vestiu-se e calçou os sapatinhos rapidamente e foi para a festa no palácio.  (Grimm, 2000, p.23)

       E é através de Deus ou da pureza dos animais que estimulam-se a boa conduta e previnem-se as punições.

       A questão central em torno da qual gira os contos, é no que se refere aos estereótipos, citados por Amaral (1998)8. Onde evidenciamos as três categorias bem definidas: a do herói como a personificação do “bem”; do vilão, a personificação do “mal” e, da vítima como o “coitadinho”.

       O herói é sempre aquele que salva a vítima, aquele que supera todos os perigos, vence todos os obstáculos e é sempre o vencedor. Comumente, este papel fica a cargo do príncipe. Como exemplo, citamos um trecho do conto A Bela Adormecida:

       O príncipe avançou mais ainda, chegando à torre e abriu a porta do quarto onde se encontrava a Bela Adormecida. Tão bela, que ele não pôde dela afastar os olhos por um segundo, e curvando-se, beijou-a. A Bela Adormecida, logo que foi beijada, acordou, abriu os olhos e encarou o príncipe, com uma expressão de doçura e carinho.

       Os dois desceram da torre, e o Rei e a Rainha e todos os cortesãos acordaram e olharam uns para os outros atônitos. Os cavalos relincharam e os cães latiram no pátio; os pombos acordaram no telhado e alcançaram vôo; o fogo na cozinha crepitou de novo e cozinhou a carne, a criada continuou a depenar a galinha e o cozinheiro acertou um tapa com toda a força na cabeça do menino. (Grimm, 2000, p.252-3)

       Já o vilão, ao contrário, é sempre aquele que faz as maldades, que carrega consigo os estereótipos e as características do “feio”, do amedrontado. É aquele em que os autores colocam sob seus ombros a responsabilidade de transgredir as regras e de receber a punição por tal ato no final das histórias. O papel do vilão é sempre dado às bruxas ou as madrastas, muito mencionado nos contos. Como acontece no conto da Bela Adormecida:

       Quando onze das fadas tinham feito as suas banançosas promessas, apareceu inesperadamente no palácio aquela que não fora convidada. Sem cumprimentar e mesmo olhar para pessoa alguma, a intrusa gritou, com voz furiosa e ameaçadora:

       _ Quando tiver quinze anos, a princesa espetará a mão em um fuso de fiar e cairá morta.(Grimm, 2000, p.248)

       Ou no conto da Branca de Neve:

       Passado um ano, o rei casou-se de novo. Sua segunda mulher era bela, mas altiva e orgulhosa, não admitia que nenhuma outra mulher fosse mais formosa do que ela. Tinha um espelho encantado, diante do qual ficava se contemplando horas seguidas e perguntava:

       Dize a pura verdade, dize, espelho meu:

       Há no mundo mulher mais bela do que eu?

       E certo dia, o espelho respondeu:

       Aqui neste quarto sois vós, com certeza,

       Mas Branca da Neve possui mais beleza.

       A rainha ficou lívida de raiva e de inveja. E, desde aquele momento, odiou Branca da Neve.

       O ódio foi crescendo em seu coração de tal maneira que ele não teve mais sossego: noite e dia invejava a beleza da princesinha, revoltava-se de ser menos formosa do que ela, não se resignava de modo algum.

       Afinal, um dia chamou um caçador e disse-lhe:

       _ Leva a menina para a floresta, bem longe. Não suporto mais vê-la perto de mim. Mata-a e, como prova de que cumpriste a minha ordem, traze-me o seu pulmão e o seu ficado.(Grimm, 2000, p. 359-60)

       Por último, encontramos a vítima, que tem como característica própria a fragilidade, a beleza física e a esperança de sempre ser salva por seu herói. Esta geralmente é traduzida à imagem da princesa ou das crianças.   

       Sendo assim, a formação ideológica encontrada nos discursos veiculados nos contos é o de exclusão, no qual, os comportamentos que fogem do padrão aceitável, eram estigmatizados.

       Concluiremos nossa análise tomando como ponto de partida os finais reservados às histórias: … e viveram felizes para sempre. Como acontece com o conto da Bela Adormecida que termina assim: “E o casamento da princesa com o príncipe que a beijou após seu sono de cem anos, foi celebrado com a maior pompa, e o casal viveu feliz até o fim de seus dias”. (Grimm, 2000, p.252-3)

       Todos os contos, sem exceção, têm um final feliz, onde geralmente o herói e a vítima terminam juntos e o vilão punido por sua perversidade. Assim, de história em história, nossas crianças vão tomando gosto pelos contos de fada e sonhando com seus príncipes e princesas encantadas, porém, a medida que vão tornando-se adultos como nós, percebem que tudo não passa de fantasias e que a realidade, embora perpasse por “contos de fada”, nem sempre tem um final feliz que dure para sempre. FIM!!!

5- Referências Bibliográficas

AMARAL, Lígia Assumpção. Espelho convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo pela voz da literatura infanto-juvenil. São Paulo: 1992. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – USP.

______. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, Julio Goppa. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998. p.11-30.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

BARROS, Luciana Ribeiro. As diferenças em dialogicidade no contexto escolar: um olhar sócio-histórico. Juiz de Fora, 2003. 110p. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFJF.

BRASIL. Constituição Federal de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/bdtextual/const88/const88.htm>. Acesso em 03 jun. 2003.

FONSECA, Victor da. Educação Especial. Petrópolis: Vozes, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1989.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de fada. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

MARQUES, Carlos Alberto. A imagem da alteridade na mídia. Rio de janeiro: 2001. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – UFRJ.

MARQUES, Carlos Alberto; MARQUES, Luciana Pacheco. Do universal ao múltiplo: os caminhos da inclusão. In: LISITA, Verbena Moreira S. de S.; SOUSA, Luciana Freire E.C.P. (org). Políticas educacionais, práticas escolares e alternativas de inclusão escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.223-39.

MARQUES, Daniela Ferreira Mendonça. E o pintinho era quadrado: o conceito da deficiência nos livros infantis e as formas de percepção e participação das crianças frente ao tema. Campinas, São Paulo: 1998. Monografia ( Trabalho de conclusão de Curso de Pedagogia)- UNICAMP.

MARQUES, Luciana Pacheco. O professor de alunos com deficiência mental: concepções e prática pedagógica. Juiz de Fora: EDUFJF, 2001. 

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.ed. Campinas: Pontes, 1987.

_____. Terra à vista. São Paulo: Cortez, 1990.

______. O que é lingüística. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Coleção primeiros passos).

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______. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.

PERROTTI, Edmir. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990.

SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga: reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987.

SILVA, Jerusa de Pinho Tavares. Sociedade inclusiva: um longo caminho a seguir… 2002. Monografia (Especialização em psicopedagogia) Faculdade de Ciências Humanas de Pedro Leopoldo. Pedro Leopoldo: 2002

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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