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O nariz comanda

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Criado para pessoas com paralisias graves, novo sistema permite escrever e dirigir cadeiras de roda com simples aspirações do nariz. A novidade pode ser um alento para casos de tetraplegia e síndrome do encarceramento, onde piscar é a única forma de se comunicar.

Quem assistiu ao filme O escafandro e a borboleta (2007) já se deparou com o drama da síndrome do encarceramento, ou locked-in syndrome. O longa-metragem francês conta a história de Jean-Dominique Bauby, editor de uma revista de moda que tem a vida interrompida por um derrame, e desperta dentro de um corpo que não lhe obedece a um comando. O único movimento voluntário que lhe resta é do olho esquerdo. É com ele que começa a se comunicar, piscando quando a enfermeira diz a letra do alfabeto certa, até soletrar uma palavra.

A história de Bauby é real, e o livro que escreveu com o piscar dos olhos inspirou o filme homônimo. Na síndrome do encarceramento, a vítima permanece lúcida, mas é aprisionada pelo corpo. Para deficiências graves como esta, a ciência tenta desenvolver sistemas complexos de computadores ou máquinas que possam ser comandadas diretamente pelo cérebro. Ainda há um longo caminho pela frente.

Mas, enquanto não se chega lá, um grupo de pesquisadores de Israel descobriu uma nova alternativa para deficientes transmitirem comandos quase na ponta do nariz: a aspiração.

Os resultados da pesquisa, liderada por Anton Plotkin, do Departamento de Neurobiologia Instituto Weizmann, foram publicados nesta segunda-feira no periódico PNAS. O grupo desenvolveu um ‘controlador de aspirações’ (sniff controller), que mede as mudanças na pressão nasal e as transforma em comandos.

O equipamento foi testado em pessoas saudáveis – que obtiveram a mesma agilidade e precisão para jogar jogos de computador com o equipamento que usando joysticks e mouses – e depois em vítimas de síndrome do encarceramento e tetraplégicos.

A imagem indica como o controlador de aspirações transmite os comandos para o computador. Um voluntário saudável usa o dispositivo, com pequenas cânulas inseridas nas narinas para detectar as variações na pressão nasal (reprodução/ PNAS).

Resultados positivos

Três pacientes com a síndrome foram testados. A primeira se comunicou pela primeira vez sete meses depois do derrame, e o segundo pôde escrever pela primeira vez após dez anos – até então, comunicava-se com familiares e enfermeiros pelas piscadelas. Com o terceiro, não deu certo: ele não conseguiu controlar as aspirações voluntariamente.

O mecanismo foi então testado em dez tetraplégicos, que puderam escrever e fazer uma busca na internet. A fase de testes seguinte verificou se as ‘fungadas’ poderiam direcionar uma cadeira de rodas eletrônica. O artigo descreve que, depois do teste com dez voluntários, um tetraplégico conseguiu operar o sistema com 15 minutos de treino.

Diante dos resultados positivos, o Instituto Weizmann, em Israel, já está no processo de patentear a invenção. “Este é um caso raro em que a fase de desenvolvimento já está praticamente concluída”, diz à CH On-line Noam Sobel, do Departamento de Neurobiologia, um dos autores do estudo.

“O mecanismo funciona. Agora, esperamos que alguém queira comercializá-lo. Nosso laboratório pode ajudar algumas dezenas de pessoas, mas espero que esta tecnologia ajude milhares”.

Segundo Sobel, a ideia surgiu durante outra pesquisa: o grupo estudava o papel da aspiração na percepção olfativa e criou um mecanismo para liberar odores que era acionado por fungadas do nariz. “Percebemos que ela funciona como um ‘gatilho’ de grande precisão. Então nos ocorreu que essa precisão poderia ser usada para controlar outras coisas”, conta ele.

No vídeo, veja como a tecnologia é usado para controlar uma cadeira de rodas e escrever (trechos em inglês)


Aspiração ilesa
Um dos pressupostos para a pesquisa foi que paralisias graves não comprometeriam o movimento do palato mole, o tecido macio no fundo do céu da boca que determina o controle sobre as aspirações. Como a região é controlada por múltiplos nervos cranianos, isso aumenta as chances de conservar seu movimento após lesões.

Sobel explica, no entanto, que algumas pessoas não têm o controle voluntário do palato mole. Isso explica o fato de a terceira vítima da síndrome do encarceramento não ter dominado o mecanismo. Segundo o pesquisador, 25% dos voluntários que se apresentaram para a pesquisa não tinham esse controle. Para explicar como funciona, ele alude ao mergulho:

“Para mergulhar, você precisa transferir a sua respiração da boca para o nariz. Isso vem do controle do palato mole”, explica. “Algumas pessoas simplesmente conseguem fazer, outras aprendem, mas outras nunca conseguem.”

As três telas indicam como funciona o ‘software’ de texto. Uma luz verde se alterna entre os campos diferentes, e aspirar equivale a selecionar o que está destacado. Primeiro selecionou-se o campo do alfabeto, depois, a linha onde está a letra desejada, e depois, a letra certa (reprodução/ PNAS).

Padrões possíveis

O controlador de aspirações detecta as variações na pressão nasal pelos pequenos tubos inseridos nas narinas, e então transmite a mensagem ao aparelho. Como a aspiração é variável, pode gerar diferentes padrões.

Para mover as cadeiras elétricas, por exemplo, os comandos eram: duas aspirações levavam à frente; duas exalações, para trás; uma fungada para dentro e outra para fora, para a direita; e por aí vai.

No software desenvolvido para escrever, a mudança de pressão funciona para selecionar o que está sendo mostrado no computador. A tela exibe campos diferentes, que são alternadamente i
luminados por uma luz verde. Os campos vão ficando menores, até que se chegue à letra desejada para soletrar uma palavra. E a dinâmica recomeça.

O processo é lento. A velocidade alcançada pelas duas vítimas da síndrome do encarceramento foi de em média 20,6 segundos por letra, na primeira paciente, e 49,3 s por letra, no segundo. Mas os pesquisadores apontam vantagens em relação a outras tecnologias assistivas – sobretudo para a síndrome do encarceramento, onde as únicas alternativas eram rastreadores dos olhos e controladores do esfíncter.

Para outros casos de deficiência grave, como a tetraplegia, há mecanismos controlados pela língua, por um canudo levado à boca ou por sensores de movimentos da cabeça.

“Cada um desses métodos têm suas vantagens, mas consideramos que a combinação de simplicidade, robustez, alto nível de liberdade, exigência mínima de atenção e a conservação neural tornam o controlador de aspirações uma solução particularmente interessante”, resume o artigo.

Os pesquisadores lembram, por fim, que Jean-Domique Bauby escreveu O escafandro e a borboleta num ritmo de uma palavra a cada dois minutos, entre a média dos dois pacientes testados. Por mais lento que seja, o importante é que “tal ritmo de escrita permite uma auto-expressão significativa”.

Fonte: Júlia Dias Carneiro – Ciência Hoje On-line



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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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