Entrevistas

Transformou a arte numa ferramenta de inclusão: Entrevista com o cartunista Ricardo Ferraz

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Caro (a) leitor (a),

O entrevistado pelo Blog Deficiente Ciente é o cartunista, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim (ES), Ricardo Ferraz. O trabalho desse artista já percorreu o mundo, e no Brasil ficou conhecido com as vinhetas criativas dos comerciais da TV Globo. Através do cartum, Ferraz luta por uma sociedade inclusiva. Acompanhe a entrevista:

Ricardo FerrazDeficiente Ciente: Como se tornou uma pessoa com deficiência? E quando começou o interesse pela arte?

Ricardo Ferraz: Tenho orgulho da minha história de superação, na infância onde descobri a arte através da dor quando contraí pólio aos cinco anos de idade, morando numa fazenda, sem nenhum recurso. De tanto levar agulhadas das injeções que meu pai aplicava sem nenhuma experiência , meus braços e “bum-bum”, viraram uma ferida só. Mas até que um dia encontrei minha salvação, num pedaço de papel de embrulho e um carvão de lenha, rabiscava de forma lúdica para aliviar a dor, mas minha infelicidade era quando não tinha mais espaço para o rabisco, e, para conseguir mais papel, eu chorava e dizia que queria comer pão. Desesperada pelos berros, minha mãe saia a galope em um cavalo para comprar na única venda da fazenda e, ao retornar com os pães, eu esperava ela sair do quarto e jogava os pães fora para ficar apenas com o papel. Assim começou o meu amor pela arte. Nas palestras motivacionais ,falo para os jovens e crianças: “acredite no seu sonho, mas precisa ser determinado, persistente, ser humilde e saber ouvir”. Falo basicamente dos valores e mostro a eles: é possível realizar sonhos. Eu quero ser um espelho positivo para esses jovens que não tem perspectiva, reflexo dos problemas sociais e do ambiente hostil das famílias desestruturadas. Deixo meu exemplo e cito: se Ricardo, que sofreu tanto, transformou o” limão em limonada”, por que eles também não conseguem?

D.C.: Como veio a ideia de abordar o dia-a-dia das pessoas com deficiência e suas barreiras físicas e humanas através do cartum?

R.F.: Encontrei uma grande lacuna nas artes gráficas. Quando via um cartum sobre deficientes, era recheado de preconceitos e as conhecidas piadas de salão, como aquelas: “você conhece a piada do ceguinho? Do aleijadinho? Do mudinho… E muitos rs, rs, rs. Como já dizia o saudoso jornalista Paulo Francis, “um cartum vale milhares de palavras para um povo a quem se nega as primeiras letras”. E, acreditando na força da imagem, comecei abordar as barreiras arquitetônicas, ambientais e atitudinais enfrentadas pelas pessoas com deficiência no seu dia a dia e seus conflitos com a sociedade. Queria denunciar essas barreiras, mas sem dramalhão mexicano e encontrei no humor uma forma de falar sério e quis mostrar que a deficiência não estava nas limitações físicas e sim na sociedade, no preconceito, na ignorância. Fiz “piada de brasileiro” contada por português, mas com bastante critério para não ficar vulgar. Não tive dificuldade de criar os cartuns, apenas retratava com fidelidade e até o humor não era minha criação, já estava “embutido” na desinformação da comunidade por não saber lidar com o assunto nas abordagens, transformavam em situações constrangedoras e humilhantes. Cito algumas passagens reais: uma pessoa com deficiência, ao aproximar de outra, sem deficiência, esta, precipitadamente, já tirava alguns centavos do bolso e jogava no colo do cadeirante como esmola, mas, na realidade, ele queria apenas uma informação. Em outra passagem, uma moça paraplégica dirigia seu carro e, no cruzamento do semáforo, entre olhares, surgiu uma paquera, e o conquistador chegou até a porta do carro, cheio de romantismo e elogios. Mas, quando percebeu que a sua musa usava muletas, saiu pedindo desculpas: “não vi a muleta da senhora, mil perdões!” Foi uma iniciativa plausível em relação à receptividade e ao carinho dos leitores, pois todos entenderam o objetivo e a sua contribuição para a autocrítica e as mudanças de conceito.

D.C.: Como vê a questão da acessibilidade de pessoas com deficiência no Brasil?

R.F.: O mundo é guiado pelos valores da cidade, e o princípio da cidadania está no respeito aos direitos humanos, o convívio com a diferença e a diversidade humana. É preciso reconstruir, desconstruir, rever conceitos, quebrar paradigmas excludentes, priorizar a humanização dos serviços, a autonomia das pessoas e o direito de ir vir com segurança. É preocupante o número crescente de pessoas com deficiência e a longevidade dos nossos idosos numa sociedade que não respeita os valores. Devemos pensar numa cidade para todos, adotando o conceito do Desenho Universal, ou seja, a acessibilidade e qualidade de vida. Cidadania precisa deixar de ser um discurso apenas, deixar de ser utopia e constituir-se na prática, traduzir-se em comprometimentos com a verdade da realidade presente no cotidiano e com os destinos da sociedade. Constatamos que apesar de termos uma das melhores constituições do mundo, a maioria das leis, ainda estão apenas no papel, um exemplo é a Lei de Acessibilidade, pouco se ver essas conquistas na maioria das cidades brasileiras. Os governos ignoram a política de mobilidade urbana, qualidade de vida entre outros conceitos. Estamos assistindo passivamente a degradação das pequenas, médias e grandes cidades com crescimento desordenado, estão intransitáveis nossas metrópoles caóticas.

D.C.: Você venceu concursos de vinhetas criativas promovidos pela Rede Globo, foi escolhido para criar o selo de 30 anos de luta das Pessoas com Deficiência pela Organização das Nações Unidas (ONU) e teve seus trabalhos exibidos em campanha do Teleton, em prol da AACD. Como foi todo esse reconhecimento para você? Conte-nos.

R.F.: Em 2001, a Rede Globo promoveu em nível nacional o primeiro concurso de desenho aberto a profissionais e amadores, mais conhecido como “Plim-Plim”, aquelas vinhetinhas animadas para anunciar o intervalo comercial. Pensei: “como amador, não custa nada sonhar…” Pequei um desenho que tinha criado em 1981, que retrata dois cadeirantes e uma escada. Imaginei aquele desenho em movimento, era um sonho quase impossível, passei a limpo e enviei por correio e, para minha surpresa, entre tantos concorrentes do Brasil, a emissora selecionou 20 desenhos e o meu estava lá! Fui o primeiro capixaba a ter um desenho na Globo e a primeira vinheta temática na TV, numa época em que não se falava em acessibilidade. O concurso durou sete anos. Dos sete concursos, venci quatro com outros temas! A emissora parou com o concurso, para mim foi uma das maiores conquistas pelo reconhecimento em todo o país! Com essa visibilidade, abriu portas para o mundo, conquistei outros espaços na mídia nacional e internacional. Além do selo comemorativo, fiz desenho para a ONU que utiliza através de suas agências pelo mundo, abordando o conceito do “modelo médico e modelo social”. Posso resumir numa frase, ”Grandes sãos os seres humanos que conhecedores de seus limites, tornam infinitas as suas possibilidades”.

D.C.: Conte-nos sobre seu livro “Visão & Revisão, Conceito e Pré-Conceito”.

R.F.: O livro “Visão e Revisão. Conceito e Pré-Conceito”, 3ª edição, é uma coletânea de cartuns temáticos que aborda de forma crítica e humorada a realidade das pessoas com deficiência que comecei a produzi em 1981. Na década de 80, a proposta era denunciar e ao mesmo tempo sensibilizar a sociedade sobre a nossa luta, que, na época, era pela reintegração social. Além dos cartuns que comecei a publicar em boletins informativos de várias associações de pessoas com deficiência do país. Também levei o tema para uma exposição itinerante, com o título homônimo do livro, que completou 32 anos. Percorri o Brasil e exterior. Fui o primeiro artista a levar esse tema para as galerias de arte e espaços alternativos e, onde passei, deixei a semente da consciência e da reflexão da sociedade. A exposição foi vista por milhares de pessoas e, no livro de assinaturas, as pessoas deixavam mensagens de carinho pela causa. As escolas levavam seus alunos e eles deixavam suas impressões numa pequena urna de papelão, o resultado era sempre positivo. Essa exposição contribuiu positivamente na quebra de paradigmas numa época que não se falava em inclusão e outros valores. A arte foi fundamental nesse processo. Tocar na “ferida” da sociedade, mostrando a realidade desses milhões de brasileiros excluídos. Atualmente, os desenhos são utilizados em livro didáticos das principais editoras do país, cartilhas, sites, palestras etc.
Com essa última edição, encerro um ciclo de vinte anos, não pretendo mais abordar a “problemática e sim a solucionática”. Há bastante tempo mudei meu foco, abordo a inclusão e conceito do “modelo social”, o convívio com as diferenças, acompanhando as mudanças e os novos paradigmas. Lancei um livro sobre o bullying, que acho um retrocesso em tempos de inclusão social, conviver com a diversidade, educação inclusiva. O livro, com o título “Bullying” Vamos Combater Esse Mal pela Raiz?”, é o resultado de dois anos de pesquisa, numa época em que quase não se falava sobre o tema. A proposta é provocar reflexões e resgatar os valores da família.

D.C.: Como vê o mercado de trabalho e a pessoa com deficiência?

R.F.: Desconfie de um país que tem lei de cotas para garantir os direitos essenciais como educação e trabalho de seus cidadãos, isso quer dizer claramente que vivemos numa sociedade desigual e preconceituosa. Se a lei obriga, será que ela é cumprida “por livre e espontânea vontade ou pressão?” Quando falamos em empregabilidade das pessoas com deficiência, sabemos que estamos pisando num campo minado, ou seja, no mundo corporativo, competitivo e globalizado! A cultura do “in-válido” ainda ofusca o olhar desse setor que aos poucos e ainda de forma míope vai aprender que investir na diversidade humana é o melhor negócio. Num país com dimensão continental e sua complexidade multifatorial, necessita de tempo para “andar na linha” sob o olhar atento das instituições democráticas e da sociedade organizada.

D.C.: O que a criação dos cartuns trouxe, em especial, para sua vida?

R.F.: Respondo com o lirismo poético do Brecht, “Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver.”

Posso falar com todas as letras, fui salvo pela arte! Ela foi e sempre será minha ferramenta de cidadania na construção de uma sociedade que sonhamos, lutamos e queremos!

D.C.: Além dos cartuns você possui outros projetos voltados à pessoa com deficiência?

R.F.: Como professor de desenho artístico e arte educador, trabalho com jovens em risco social e idosos de dois asilos da cidade de Cachoeiro de Itapemirim-( ES), através de um projeto de minha autoria, “Desenhando o Amanhã.”Utilizo o poder da arte como instrumento de superação e transformação social, tema que posso falar com experiência própria. Realizo palestras em escolas e para todos os segmentos da sociedade, abordando diversos temas com foco nos valores sociais entre eles a problemática do bullying no ambiente escolar.

Costumo pedir aos entrevistados para que deixe uma mensagem aos leitores do blog Deficiente Ciente.

“Eu tenho um sonho…” Essa frase foi dita há 50 anos atrás pelo líder negro americano, Martin Luther King. O maior investimento de uma nação, sociedade, empresa é investir no ser humano! É mais barato incluir, pois estamos pagando um preço muito alto em todos os sentidos por essa sociedade excludente. A inclusão social não pode ficar somente no discurso, é preciso ação e o primeiro passo é remover a cultura do pré-conceito e valorizar e respeitar as diferenças. Eu, como cidadão, fiz apenas a minha parte. Nessa história, fui um herói, pois lutei com unhas e dentes para mostrar a sociedade – “penso, logo existo” – mas não quero ser mais um” Dom Quixote”, não quero ser mais um “super-herói”. Na época, tinha que fazer praticamente sozinho, mas os heróis um dia cansam, envelhecem, morrem e não deixam substituto. Hoje, cada um deve fazer a sua parte, pois a pior das deficiências é a omissão. Um mundo inclusivo é possível só depende de você! “SIM, NÓS PODEMOS”!! B. Obama

Interessados em conhecer os trabalhos do artista, procure no Google, “cartunista Ricardo Ferraz”. Para adquirir os livros, encaminhe sua solicitação para o e-mail: ricardoferraz33@gmail.com Fones: (28) 3522-4614 e 9959-8632. Cachoeiro de Itapemirim- ES.

Alguns de seus cartuns:

Cartum: Ricardo Ferraz

Cartum: Ricardo Ferraz

Cartum: Ricardo Ferraz

Cartum: Ricardo Ferraz

Ricardo Ferraz (cartunista)

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

4 thoughts on “Transformou a arte numa ferramenta de inclusão: Entrevista com o cartunista Ricardo Ferraz

  • Sonia Dezute

    Entrevista extraordinária! Um profissional sério, lúcido quando aos conceitos e pré conceitos sociais. Usando seu talento para conscientizar, com propriedade, nossos meios sociais! Parabéns!

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  • aNTONIO hENRIQUE

    Meus parabéns pelas resposta a esta entrevista, se a sociedade Brasileira, e os srs, Políticos pensassem, como vc, Ricardo, as coisas seriam diferentes para o deficiente físico, q encontra vários problemas no seu dia a dia.

    Resposta
  • Andréa Poletto Sonza

    PARABÉNS, Ricardo!! Seus cartoons retratam, com humor, situações que precisamos debater, discutir, orientar, informar esse povo com vistas a evitar, ou melhor, acabar com o preconceito! Obrigada! O povo agradece!

    Resposta
  • Antonio Luciano Soares

    Parabéns pela publicação, é disso que nossa sociedade “preconceituosa” precisa, ou seja, eliminar o capacitismo oferecendo mais oportunidades de posição social ao deficiente, e o transformando numa pessoa capacitada e como a própria sociedade diz “normal” diante de outras pessoas que não são deficientes.

    Resposta

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