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“Fui desenganada quando nasci, e hoje sou chef, atriz e empresária”, diz mulher com síndrome de down

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Quando nasceu, há 22 anos, os médicos garantiram que a capixaba Maria Clara Ribeiro Maciel de Carvalho não aprenderia nem o básico. Hoje, casada, ela é atriz, chef de cozinha e empresária e está tirando carteira de motorista — único sonho que ainda não realizou, junto com o de ser mãe.

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“Antes ainda de eu nascer, meus pais, que eram muito jovens na época, não sabiam que eu teria síndrome de down. Somente quando eu vim ao mundo foi que avisaram à minha mãe, ainda na sala de parto, que eu tinha um ‘probleminha’, mas os médicos não falaram do que se tratava naquele primeiro momento. E quando ela soube que esse tal ‘probleminha’ era o fato de eu ter nascido com síndrome de down, meus pais, é claro, ficaram chateados com a forma como a situação foi conduzida pelos médicos e, principalmente, pela forma total sem preparo como a notícia lhes foi dada. Até porque para os meus pais isso nunca foi um problema, muito pelo contrário. E esse médico apresentou aos meus pais tantas limitações em relação à mim, chegando a eliminar qualquer possibilidade que eu pudesse ter uma vida normal. Também foi dito que eu teria muita dificuldade para aprender qualquer coisa e, pior, que eu nunca aprenderia o básico. Muito triste para um pai e uma mãe ouvir isso.

Sempre fui incentivada por eles a superar todos os desafios que pintassem na minha frente e, sem dúvidas, o maior deles foi me submeter a uma complicada cirurgia cardíaca ainda aos oito meses de vida, porque eu corria sérios riscos de morrer. Por sorte, a cirurgia foi um sucesso e, 22 anos depois, eis-me aqui: linda, loura, bem resolvida e feliz! Contrariando a tudo que me sentenciaram ao nascer.

Meus pais nunca me excluíram de nada. Eles faziam questão, desde quando eu era bem pequena, que eu frequentasse todos os lugares e também a escola como uma criança normal. Eu só estudei em escolas regulares. Comunicativa como sempre fui, fazia amigos com muita facilidade. Aos dois anos de idade, eu já estava na creche, onde fui muito bem recebida por todos. Saí de lá aos cinco anos, já conhecendo todas as letrinhas, escrevendo algumas palavras e falando de tudo. Nunca tive um aprendizado lento, ao contrário do que todos achavam.

Me lembro que, aos seis anos, pedi aos meus pais de presente de aniversário uma irmãzinha. Foi quando nasceu a minha princesinha chamada Vitória, minha irmã mais nova. Somos muito companheiras, amigas, confidentes e cúmplices. Uma defende a outra com unhas e dentes, se preciso for.

Após o período da creche, eu fui para o colégio onde estudei do jardim de infância até o ensino médio. Lá, meus pais conversaram com a pedagoga e os professores para que eu pudesse estudar numa sala regular e com ensino igual aos demais alunos. Mais uma vez, fui muito bem recebida, todos pareciam estar de braços abertos para mim, apostavam na minha evolução e fiz amizades que duram até hoje. Sempre participei de todas as atividades, nunca me exclui ou me esquivei de nada. O que rolasse lá estava eu. Viagens da turma, competições esportivas, festinhas, aulas de canto e teatro… Sempre tive uma vida totalmente integrada e me senti inserida no meio da sociedade, tanto no colégio como fora dele e aprendi muito com todos!

Como toda jovem, gosto de ir a festas e baladas. Sair pra dançar é comigo mesmo. Amo! Já perdi a conta de quantas festas de debutante das minhas amigas fui, e sempre sou a última a deixar a pista de dança. Quando fiz quinze anos, tive uma festa muito especial. Meus amigos fizeram uma homenagem linda e inesquecível para mim. Fiquei muito emocionada, não sabia que eu era tão querida! Me lembro que dancei valsa com o meu príncipe, um rapaz bem bonito que eu já estava de olho, na época.

Mas nada na minha vida supera o ano de 2013. Foi um ano mágico para mim… Certo dia, fui convidada para assistir ao filme ‘Colegas’, junto com os jovens da ‘Associação Vitória Down’, em Vitória, Espírito Santo, ondo nasci e moro. Lá, conheci o grande amor da minha vida, meu marido Felipe. Nunca esperei que uma simples saidinha inocente para ir ao cinema seria o passaporte pra eu conhecer o homem da minha vida! Mas, naquela ocasião, apenas nos cumprimentamos. Só que, como não sou boba nem nada, logo fiquei de olho naquele gatinho. Felipe é um rapaz lindo, de coração nobre! Ele é louro, tem belos olhos verdes e também é portador da síndrome de down. Ele também é DJ, toca em festas e algumas boates, e sempre procurou viver uma vida normal, assim como eu. Isso era o que mais me fascinava nele.

Logo depois que o conheci, fui convidada pela associação a participar das aulas de teatro que eles mantinham e advinha quem eu encontro no primeiro dia de aula? Ele mesmo, meu louro lindo! Porque na minha cabeça ele já era meu e de mais ninguém, sabe? Foi amor à primeira vista! Descobri, logo de cara, que nós nos completamos. E, já começamos a namorar. Ainda me lembro com lágrima nos olhos da frase que ele me disse ao me pedir em namoro: ‘Eu te dou o mundo, as estrelas e a lua’!

Felipe foi o meu primeiro e único namorado. Sempre tivemos uma relação normal, como de qualquer casal. Nos entrosamos em tudo, se é que vocês me entendem… Quando estamos juntos, de mãos dadas, eu já notei alguns olhares curiosos e espantados na nossa direção. Mas, logo a gente dá um beijão daqueles cinematográficos e a pessoa, em questão, fica sem graça e desvia o olhar. E assim, vamos seguindo.

Na nossa lua de mel não foi diferente. Viajamos sozinhos, pela primeira vez. Fomos curtir as montanhas capixabas, adoramos o friozinho da serra. Mas, sempre tem um ou outro que nos olha com espanto! Não entendo o que há demais em um casal juntos e curtindo a vida. Seria apenas porque temos síndrome de down? Sei que alguns ainda se chocam. Mais uma vez, tiramos de letra qualquer olhar carregado de preconceito ou pré- julgamento.

Uma outra paixão na minha vida é a culinária! Sempre gostei de cozinhar. Me recordo de eu ainda bem pequenininha e pedindo para os meus pais de presente de Natal toda a coleção dos livros de receita da Ana Maria Braga. Coleciono e sempre tive o sonho de conhecê-la pessoalmente e cozinhar para ela. Minha especialidade são os doces! Faço cada bolo e docinhos de dar água na boca, sem falsa modéstia. Aprendi a cozinhar ao ver minha mãe mexendo suas panelas.

Quando terminei o ensino médio, quis cursar gastronomia. Meu sonho sempre foi abrir o meu próprio restaurante ou doceria. Então, pesquisei e encontrei duas faculdades em Vitória. Optei pela por uma universidade que tem uma educação totalmente inclusiva e ativa, onde mais uma vez, fui super bem recebida por todos: reitores, professores e alunos. Ninguém ali nunca colocou obstáculos para que eu não pudesse me formar. Pelo contrário, eu notava que o diferencial era não enxergar as diferenças e sim as qualidades dos seus alunos, mostrando que essa instituição está à frente quando o quesito é inclusão. Fui tratada como qualquer outro aluno. Prestei vestibular, passei super bem colocada, segui todo o processo avaliativo com êxito. Durante todo o curso fiz provas, trabalhos, criei pratos diferenciados e estudei muito. Passei por vários testes e projetos práticos, tive que me dedicar super, abrindo mão de muitos fins de semana e feriados só estudando, praticando, cozinhando, errando e acertando as receitas, as repetindo incansavelmente até sair o melhor prato ou doce do mundo. Eu estava focada, sempre fui muito determinada. Ano retrasado, em 2017, eu terminei o curso de gastronomia. Minha formatura foi inesquecível. Chorei de emoção. Me senti muito vitoriosa ao erguer aquele diploma com as mãos.

Durante o curso fiz alguns estágios, como em restaurantes e também em uma hamburgueria da moda da cidade, onde me deram uma oportunidade única de trabalho. Sempre um tanto ousada, me lembro que fui lá e, mesmo sem conhecer ninguém, fui até o gerente, com a cara e a coragem e lhe disse que eu faria o meu estágio lá, que sempre fui meu sonho. Ele só tinha uma resposta: ‘Sim, aceito’! E foi dito e feito. Lá, aprendi muito de como funciona uma cozinha e hoje sei fazer hambúrgueres divinos. Quem prova não os esquece.

Mas, chocólatra como sempre fui, a confeitaria mexeu com meu coração e falou mais alto quando o assunto era a minha carreira. Já no terceiro período da faculdade, fiquei encantada pelos doces, por suas formas, cores e sabores. E, ao me formar, eu já sabia o que queria: abrir uma patisserie e fazer doces deliciosos para vender, adoçando a vida das pessoas. Eu já estava determinada a ser uma empresária de sucesso, e venho conseguindo.

Mais uma vez, fui atrás do meu sonho, como já de costume, e com total apoio da minha família, parti pro ramo da patisserie. Como já era frequentadora assídua de uma charmosa doceria aqui de Vitória, destemida, pedi um emprego e logo fui contratada. Trabalhei alguns meses ali. Mas quem me conhece já sabia que meu sonho não estava completo, pois eu não queria só trabalhar lá. Eu me identificava com a empresa, com seus funcionários e clientes. Então, quis dar um passo maior: queria me tornar sócia dos donos, empreender e crescer. Sem contar que meu pai, Aldeci, que é o meu grande incentivador em tudo, sempre falou que o nome da empresa tinha tudo a ver comigo, ele sempre me chamou de ‘além do doce’. Conversei com minha família da vontade de ser sócia da empresa e todos me deram total apoio. Conversamos sobre como poderíamos pagar pela sociedade, caso eu conseguisse comprar a minha participação e, dessa forma, solicitei uma reunião com os donos e os fiz uma proposta. Era pegar ou largar! E para a minha felicidade eles toparam.

Renata e Henrique, meus sócios, são muito parceiros e eu os agradeço pela oportunidade de agregar o meu sonho ao deles, assim como de mostrar o meu trabalho dentro e fora da cozinha. Também os ajudo na administração do nosso negócio. Assim, me tornei empresária no ramo de gastronomia aos 21 anos.

E para minha felicidade se tornar ainda mais completa, faltava apenas eu subir ao altar com meu noivo, o amor da minha vida, realizando, assim, o sonho de muitas mulheres: que é de casar vestida de véu e grinalda. Bingo! Mais um sonho realizado!

No dia 22 de setembro de 2018, quatro meses atrás, me casei com Felipe, numa cerimônia linda, enorme, luxuosa e rodeada de amigos e familiares, assim como eu sempre idealizei. Nos casamos no dia do aniversário do Felipe. Esse foi o seu maior presente. Tivemos uma festa maravilhosa, perfeita… Inesquecível!

Tive meu dia de noiva com todas aquelas regalias que as mulheres adoram: massagem, banho de banheira, maquiagem, espumantes, fotos, filmagens. Me vesti como uma princesa real e tudo ficou do jeitinho que planejei. Eu e meu noivo dançamos valsa e soltinho, que é tipo um samba dançado juntinho e que nós adoramos. Foi um momento mágico! Só de relembrar eu choro. Me emociono igual ao dia do casório. Fomos o primeiro casal com síndrome de down a casar no nosso estado, Espírito Santo. Mais um motivo de orgulho!

Pretendo ser mãe e já estou me planejando para isso. Sou muito consciente e, desde já, vou a médicos e especialistas para saber quais são as minhas reais condições. E, mais uma vez, pretendo fazer tudo para que isso aconteça. A meu ver, só não tem jeito mesmo pra morte. Todo o resto podemos produzir e realizar, ainda mais se tratando de sonhos, algo muito sagrado pra mim. Respeito muito os sonhos das pessoas! Os meus já foram quase todos realizados… Se tem algo que me faz feliz, lá estou eu fazendo, realizando e colocando em prática.

Sou chef de cozinha, atriz de teatro, faço shows de dança de salão, comerciais de televisão, ministro palestras motivacionais e estou escrevendo um livro sobre minha vida. Tenho uma autoestima altíssima, quem me conhece sabe. Nada me abala. Não suporto tristeza, nem tenho vocação para isso. Gosto de sair à noite, ir à boate, barzinhos, shopping, cinema. Gosto de jantar fora, viajar e amo fazer amigos. Tenho paixão por leitura e sou fã número um da Malala, cujo livro eu já li diversas vezes. Super me identifico com a história dela pela luta por seus direitos.

Minha próxima conquista (e esta está muito perto de ser abraçada por mim) vai ser tirar a minha carteira de motorista. Sempre tive paixão por dirigir! Pegar a estrada, cabelos ao vento, aquela sensação de liberdade indescritível! Essa é a minha vibe! Estou focadíssima, treinando todos os dias, estudando o livro com as informações teóricas e as regras de trânsito, além de já ter feito todos os simulados que estão disponíveis no site do Detran e também as aulas práticas. Já estou ficando fera e, muito em breve, farei os exames médicos e psicológicos para ter em mãos a tão desejada carteira de motorista. Estou muito confiante e determinada a ser a primeira pessoa com síndrome de down no Brasil a ter uma habilitação. Eu já até escolhi a cor e o modelo do carro que vou comprar. Vou curtir cada segundo pegando a estrada com o meu amor. Sabe, dá um orgulho danado olhar para trás e ver tudo que venho conquistando até aqui. Cada degrau que vou subindo…

Desde que nasci o mundo me disse não. Para tudo! Meus pais contam que, algumas pessoas pessimistas e sem noção chegaram a falar para eles que eu não iria conseguir ler, escrever, me comunicar bem. Namorar e casar então… Nem entrava em cogitação. Muitos me apontavam e diziam: não vai fazer isso, não vai fazer aquilo, sempre me impondo a certas limitações. Meus pais jamais me limitaram e sempre me deram oportunidades, me tratando como uma menina normal. Nunca devemos ficar presos a limites que querem nos impor, pois somos dono do nosso destino! E eu mudei o meu, viu? Afinal, o preconceito está nos olhos das pessoas, de quem nos vê. E nunca esteve nos meus”.

Fonte: https://revistamarieclaire.globo.com

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

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