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A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte Final

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Caro leitor, dando continuidade ao artigo “A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas” da pesquisadora Sandra Regina Schewinsky*, acompanhe hoje a última  parte deste texto, que considero muito relevante. Para que possa entender melhor, recomendo que leia a primeira e a segunda parte desse texto.

“Cultuar o frívolo, passar por cima das emoções, ignorar o sofrimento e continuar sorrindo! A barbárie não está só naquele que puxa o gatilho, ou assina as leis, ou vende as drogas. Ela está na frieza das ações e não ações, no julgamento do outro, na falta de afeto e de solidariedade.”

A deficiência da pessoa jamais passa em brancas nuvens, gera incômodos dos quais o preconceituoso tenta se defender, pode ser pelo ataque propriamente dito, o abandono, a rejeição, ou pelo seu contra-ponto a superproteção que o desvitaliza, como ainda a negação da deficiência por atenuações, por exemplo da fala hipócrita de que somos todos deficientes. Fico arrepiada quando escuto um profissional da área de saúde ou de educação dizer: “É tão gratificante trabalhar com eles … que eu não trabalho por dinheiro e sim por amor“ discurso obviamente preconceituoso, que ainda vem travestido de uma bondade falsa de seu interlocutor.

Amaral4 esclarece-nos com propriedade:
Insisto: des-adjetivar a deficiência é um caminho. Ou seja, ser diferente não é melhor ou pior, a diferença não é boa ou ruim, maléfica ou benéfica, para usar a terminologia de Laplantin, 1991, aviltante ou enaltecedora. A diferença /deficiência simplesmente é (p.148).

Mas quando não era e passa a ser?
A pessoa que se pensava poderosa e depara-se com a instalação da deficiência em sua vida adulta, passa a ser objeto de discriminação não só dos outros mas de si mesma. Sofre pelos preconceitos que imputava ao ver um deficiente.

Durante a realização deste trabalho, lembrei-me de um senhor que atendi há alguns anos, que sofria muito com sua nova situação de portador de deficiência física e sentia muita vergonha, referia não poder se apresentar daquela “forma” para os antigos colegas, pois ele próprio anteriormente participava de rodadas regadas a bebidas e piadas sobre deficientes, comentava, inclusive das fantasias sexuais perversas com as “menininhas aleijadinhas”.

Armadilhas do destino? Creio que não. A crueldade venha de quem for não deve ser perdoada. A pessoa que carrega consigo tamanha frieza em relação ao outro, sucumbiu à miséria da própria vida, constituiu-se em relação a um mundo social já construído que tem predominância sobre ele, ou referindo novamente, a super valorização da estética, o fetiche da mercadoria e a força do poder. Fechou as portas para a capacidade de amar, de solidariedade e de reflexão, e o sentimento de potência é substituído pelo de vergonha.

Satow6, explica-nos muito bem o que é vergonha:
A vergonha é o medo do olhar do outro e é o afeto social por excelência, pois deriva das relações com as normas da sociedade, do sentimento de ter-se afastado dessas normas. O estímulo da vergonha é o olhar do outro, da comunidade, do público. O sentimento de vergonha é provocado pelo afastar-se das normas sociais: o olhar do outro condena quem se afastou ou pensa ter se afastado das normas; por isso, a vergonha é a reguladora da moralidade, é sempre um instrumento do processo da socialização
(p. 126).

Não raro, a pessoa que adquire uma deficiência física ao longo da vida sente-se culpada por este fato, como também, não raro lhe é outorgada essa culpa. Fantasias de que está pagando por pecados, que é merecimento por má conduta e maus sentimentos, ainda vigoram nos dias de hoje; e são sutilmente veiculados pelos meios de comunicação.

O senhor que comentei não é apenas o algoz da situação, é também vítima da própria construção de sua vida e do mundo social em que está inserido. Ele sabia muito bem o que representava para seus colegas e para si: a traição e ao mesmo tempo o fracasso.

Faço aqui uma analogia ao que Adorno / Horkheimer1, teorizam sobre o criminoso:
O indivíduo fraco, atrasado, animalizado tem que sofrer, qualificado, uma forma de vida à qual se resigna sem amor; encarniçada, a violência introvertida repete-se nele. O criminoso que, ao cometer seu crime, pôs sua autoconservação acima de tudo, tem na verdade um eu mais fraco e mais instável, e o criminoso contumaz é um débil (p. 211).

Paira no ar a insinuação de que se a pessoa deficiente tivesse morrido seria melhor, seu crime é a própria vida!

Embora atualmente o discurso é da valorização do homem a todo preço, mesmo assim, os deficientes são desprezados e sucumbem a várias formas de morte. A morte física propriamente dita, o suicídio silencioso, o sofrimento psíquico, o confinamento social, a falta de acesso aos cuidados à saúde, educação e trabalho. Não é mera semelhança com outras fases da história, principalmente no tocante aos pobres.

A contradição social vigente precisa ser superada, para que a vida siga seu caminho com sentido, com condições de enfrentamento e findar a exclusão. Para tal, é necessária atenção à dança dos preconceitos de todos e de ninguém, dança envolta na música do social e na melodia da mentira manifesta.


Retomo ao meu incômodo inicial e talvez do leitor, em que a tentação de ficar escondida atrás do social é grande. Preciso, eu própria, olhar para meus preconceitos, desencantar-me comigo, reconhecer minha prisão e desconhecimento para buscar a reflexão.

Na rotina frenética, é fácil submergir a ideologia sem atentar para o que está acontecendo. Cultuar o frívolo, passar por cima das emoções, ignorar o sofrimento e continuar sorrindo! A barbárie não está só naquele que puxa o gatilho, ou assina as leis, ou vende as drogas. Ela está na frieza das ações e não ações, no julgamento do outro, na falta de afeto e de solidariedade.

Ressalto, que muitas vezes somos nossos carrascos. Qualquer pessoa pode sofrer um infortúnio e ter como seqüela uma deficiência física. Impossível negar o sofrimento real que as limitações impingem, mas se vitimar e destituir a vida de sentido não precisa ser a penalidade. Como também a existência de muitos não portadores de deficiência é desprovida de condições reais e subjetivas de qualidade.

Obviamente, não se podem mudar as questões objetivas imediatamente, mas não é preciso compactuar com aquilo que sabidamente é injusto e discriminatório. Olhar para si próprio, reconhecer os limites e inadequações, buscar a reflexão crítica e o esclarecimento, podem fortalecer o indivíduo e este, assim contribuir para uma sociedade melhor.

Bacon citado por Adorno / Horkeimer1 vislumbra a solução:
a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas estão guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre ao quais sua vontade não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores não podem alcançar… (p. 19).

Enfim, a barbárie do preconceito contra todos e de todos pode findar, quando for extirpada a crueldade contra os homens e descortinada a escuridão que encobre o esclarecimento, para que a VIDA de fato tenha valor.

REFERÊNCIAS
1- Adorno TW, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1985.
2- Crochík JL. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial; 1995.
3- Silva OM. A epopéia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de
hoje. São Paulo: Cedas Editora; 1987.
4- Amaral LA. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São Paulo: Robe
Editorial; 1995.
5- Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal; 1985.
6- Satow LA. Paralisado cerebral: construção da identidade na exclusão. São Paulo: Robe
Editorial; 1995.

*SANDRA REGINA SCHEWINSKY:Psicóloga-Encarregada do Serviço de Psicologia da DMR-FMUSP, Doutoranda em Psicologia
Social pela PUC-SP, Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, Especialista em Psicologia Hospitalar.(2004)

Recomendo que também leia o interessante artigo “Diálogos, História, Censo, Teleton e MacDiaFeliz
do colega Amilcar Zanellato.

Veja também nesse blog:
A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte 1
A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte 2
A deficiência e a questão do assistencialismo – Parte 1
Terminologia sobre deficiência na era da inclusão – Parte 1
Preconceitos na contramão da inclusão social – Parte 1
A Mídia e as Pessoas com Deficiência

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Vera Garcia

Paulista, pedagoga e blogueira. Amputada do membro superior direito devido a um acidente na infância.

2 comentários sobre “A barbárie do preconceito contra o deficiente – todos somos vítimas – Parte Final

  • Forte, necessário e esclarecedor!!!

    Flávinho Caldeira

    Resposta
  • Obrigada pelo comentário, Flávinho!

    Beijos,

    Resposta

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